O tempo dos dias como um lugar de passeio
Não foi há muito tempo. Dois meses, talvez. Uma entrevista a um encenador de teatro e no écrã um rosto masculino e vulgar que se desfigurou na memória até não já parecer um rosto e a voz perder o timbre pessoal e ganhar os graves comuns.
Mas a ideia... Uma frase aglutinadora da fertilidade de Kant na sua proposta de que qualquer ideia ou acto tem a priori a consideração da legitimidade e justeza da mesma porque, no fundo, é uma variante consequente dela - como uma unidade de pensamento que lhe está associada.
Uma hora de entrevista de teatro falado e, zás(!), sedutor e com ternura o encenador resumia numa frase o conceito que firmava inquestionavelmente o valor de qualquer universo das artes estéticas e criativas.
«O teatro como produto cultural, ou melhor, a sua dimensão real e mundana no que encerra de mais comum ao homem, e a sua configuração genuína, é arte que só ganha corpo e sentido para o espectador quando transportado para o palco e materializado na figuração humana e na expressão emotiva do próximo, os actores.
Não há tragédia, fábula ou odisseia genial e possível de deslumbrar, por mais romântico que seja o homem, se a sua expressão não deixar a escrita no papel e tomar a forma física e emocional».
Não foi há muito tempo. Quinze dias, talvez. Uma 'aflição' profissional levou-me a procurar a voz feminina e anónima de um telefone desconhecido e o alivío socorrista num último andar ao Carmo.
Pouco mais de uma hora numa assoalhada esconça que, alteada que era quase ao Castelo de São Jorge, parecia fazer-se ao céu limpo e sereno num vôo desinteressado das minhas contrariedades técnicas da hora.
Um encontro ocasional com uma estranha que confirmou a priori o que suspeitava e se formulou na voz suave e recíproca de alguém de sensibilidade particular e como uma dócil presença como nunca conhecera em 34 anos (até um gato de pelagem orgulhosa e olhos grandes e perfeitamente redondos estava no cenário!!!).
Eu comportei-me banalmente e ela recebeu-me sem excepção; Eu não escondi a gratidão e amadorismo e ela ofereceu-me o lugar a seu lado acompanhado de um chá aromático; Eu agradeci vulgar e embaraçadamente a intimidade pouco comum e ela não aceitou humilde; Ela "safou-me" com uma classe quase religiosa e eu "desenrasquei-me" sem originalidade e ao jeito do estereotipo comum:
- Gostas de flores? - Atenta ao arco-íris suave e constante no ambiente doméstico de objectos e imagens alegres.
- Sim.
Desci ao Carmo prometendo voltar a telefonar e num estado de confiança e prazer anormalmente intensos. Fora o privilégio de um momento de cumplicidade desinteressada e absoluta, mas, mais que tudo, fora o prazer pessoal da filialidade verdadeira porque livre e generosa.
A ideia? É a mesma... Uma pessoalidade encantadora e sugestiva que só podia fluir num blogue de testemunho ao belo íntrinseco e pungente que tantas vezes «nos inspira a Passear o Tempo», a poesia.
Só um gato podia habitar aquela casa - espécie melancólica e telúrica do tempo e dos dias como um «lugar de passeio». Só a sua observação muda e intrigante podia ser companheira de quem faz da palavra dos poetas um instrumento para «olhar para os dias como um lugar onde nos encontramos».
Para quem sabe, a minha sincera reciprocidade
1 Comments:
pelo esplendoroso ramo de frésias e pelas horas de conversa que são verdadeiramente passear o tempo. obrigada. pela possibilidade da descoberta de ti. :)*
Tinha um cravo no meu balcão;
veio um rapaz e pediu-mo
— mãe, dou-lho ou não?
Sentada, bordava um lenço de mão;
veio um rapaz e pediu-mo
— mãe, dou-lho ou não?
Dei um cravo e dei um lenço,
só não dei o coração;
mas se o rapaz mo pedir
— mãe, dou-lho ou não?
Eugénio de Andrade
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