terça-feira, março 22, 2005

"Não permitirei que concepções religiosas, nacionais, raciais, partidárias ou sociais intervenham entre meu dever e meus pacientes"(*)

O Programa do XVII Governo Constitucional apresentou-se superficial e só com as linhas mestras como é tradicional, o que não impedia Sócrates de brevemente esboçar as ideias sobre a Venda de Medicamentos Não Sujeitos a Prescrição Médica fora das Farmácias.
Até pelo contrário, a estratégia explícita é a do reforço da qualidade prestada pelo Sistema de Saúde e pelos intervenientes económicos nela implicados: Adoptar a prescrição electrónica de medicamentos (e meios complementares de diagnóstico), com auxiliares de decisão clínica e informação sobre custos de dose média diária e sucedâneos (Ponto 7); Restabelecer a vigilância sobre as acções de promoção do medicamento, junto de médicos e farmácias de oficina (Ponto 8); Lançar um programa de melhoria da qualidade da prescrição (Ponto 9).
Embora o Ponto 4 suscite algumas dúvidas (Em colaboração com o Ministério da Economia e com o apoio da autoridade reguladora da concorrência, reanalisar as regras de comercialização) não anuncia por si só a mudança radical de retirar o exclusivo de venda às farmácias.
O Governo aposta na confiança dos portugueses para «lançar uma dinâmica de crescimento progressivo da economia e dos seus agentes», mas, neste caso, só os hipermercados são os verdadeiros e únicos beneficiados.
Não se pode dizer que o "gato não tinha o rabo de fora". Tinha-o, na verdade, só que na frase final do "Tomo" e sem o estatuto determinante e relevante do corpo objectivo das propostas: Tornar a indústria farmacêutica nacional uma área estratégica no interface entre a economia e a saúde, objecto de atenção e medidas específicas.
Para esta prosa não preciso de raciocínios rebuscados de engenharia financeira como fez o governo para os seus objectivos claros de intenções ambíguas.
Por obrigação cabe ao Estado o papel fiscalizador e mediador da regulamentação do mercado livre e dos produtos que nele circulam, ou seja, cabe-lhe assegurar o acesso pleno do consumidor ao produto em causa e com o profissionalismo que lhe pertençe.
O que é importante é que seja livre e sério, detenha o monopólio quem deter, já que os custos é a própria economia aberta quem os dita (ou neste caso não? Como serão praticados os preços num mercado de cifras concertadas pelo tecido empresarial e liberal?).
Para alguns consumidores, em particular os que não perceberam que Sócrates está só deslocar o profícuo negócio para outras franjas empresariais, não há aqui novidade ao que lhes é imperativo, como a baixa de preço de alguns medicamentos e a comparticipação em muitos tão essenciais e tão levianamente esquecidos da acção social do Estado.
Outros acharão hipoteticamente que o desconforto de cinco minutos numa farmácia é superior ao de cinco minutos num hipermercado com corredores para fazer, filas a aguardar e caixas para alcançar, ou então descuram o papel do técnico de farmácia na avaliação das suas maleitas - de expressão menor à luz da sua ignorância - que só o conhecimento terapêutico, técnico e científico pode desmitificar ou desvendar como males maiores para a sua saúde.
O esta lei traz de verdadeiramente diferente e positivo ainda não é claro, mas as incoerências já figuram:
- se são medicamentos assim tão simplificados de manusear e consumir, então porquê a eventual presença de um auxiliar de farmácia
no novo ambiente físico?
- se a mais valia é o acesso imediato e a qualquer hora, porquê nestas estruturas que, ao contrário das farmácias, não funcionam 24 horas seguidas?
- se é uma transacção de bens perfeitamente tipificável num lojista, porque não realizá-la com o homem da gasolineira ou da loja extra?
A quem serve esta comercialização na malha social e competitiva? Quem pode conquistar o "pote de ouro" se à partida não é garantida o direito de acesso da democracia livre?
Os pequenos comerciantes que não alcançaram a grande economia global e sobrevivem numa relação de confiança e familiariedade com clientes certos e contados "é para o melhor lado que dormem" e os que, mesmo modernizados, não reúnam instrumentos económicos para exigirem a sua quota-parte da oportunidade legítima também "não estão para aí virados" com certeza.

O curioso é que são precisamente estes pequenos agentes que, fora dos meios urbanos, asseguram o consumo às populações. Lugares onde não há supers - quanto mais hipermercados -, e farmácias em cada esquina. Terras onde a assistência médica chega quando chega e onde farmacêuticos ou técnicos especializados nunca irão propagandear os malefícios do Betadine nas queimaduras ou os benefícios da Aspirina para a arritmia cardíaca.
Assuma-se com honestidade política que a rede de farmácias é, em grande parte, integrante só dos meios urbanos, o que significa à partida que os problemas da auto-medicamentação por falta de informação e acompanhamento vão continuar, como os relacionados com o acondicionamento inapropriado à conservação que se podem revelar desastrosos.
Sócrates fez tábua rasa da recuperação do crescimento económico, o que é bom, mas questiono se esta óbvia transferência de domínios na venda dos medicamentos que não precisem de receita médica constitui efeitos economicamente revitalizadores e essenciais como outras medidas que tanto urgem - o Serviço Nacional de Saúde, a rede envelhecida dos Postos de Saúde, as dívidas às farmácias, a comparticipação nos medicamentos a "preço de ouro", etc.
Em Portugal a venda de medicamentos através da Internet, sujeitos ou não a receita médica, é uma realidade em expansão e ilegal, dado que só podem ser vendidos em farmácias. E porquê?
Porque pode apresentar sérios riscos, uma vez que não garante aos utentes a qualidade, a segurança e o controlo rigoroso como sucede no circuito tradicional do medicamento.
Porque o carácter ético e clínico da transação do meio utilizado não garante a defesa da saúde no mais básico e, nos moldes actuais, implica que seja estudade e regulamentada com acções concertadas entre todos as esferas implicadas e a nível mundial, visto que a Internet ultrapassa as tradicionais fronteiras geográficas e de políticas de saúde ministeriais.
Para esta prosa não preciso de raciocínios rebuscados de engenharia financeira como fez o governo para os seus objectivos claros de intenções ambíguas.
Basta-me para inquietação, por exemplo, os lucros fartos que a quota de mercado dos genéricos pode permitir no futuro, registado o seu crescimento de 93,1% só em 2005.
Feitas as contas, basta-me a potencialidade visionista do Ponto 5 (Negociar um protocolo entre o Estado e a Indústria Farmacêutica para o controlo do crescimento do mercado do medicamento comparticipado pelo SNS) e os 58.501.091€ de um mercado potencialmente atractivo que só por agora abrange 8.457 medicamentos autorizados, 2.056 medicamentos comparticipados e 1.306 em stand-by para serem prescritos no mercado.
Valores como ética, idoneidade, democracia e justiça social, não são clichés de prosas vaidosas e muito menos conceitos vazios para mera declamação em rituais de nomenclaturas de novos governos. São palavras representativas dos valores universais que regem a acção humana para uma sociedade mais equilibrada. Pilares fundamentais para um colectivo de homens feito e pensado para servir o Homem.

"Eu, solenemente, juro consagrar minha vida a serviço da Humanidade. Darei como reconhecimento a meus mestres, meu respeito e minha gratidão.

Praticarei a minha profissão com consciência e dignidade.
A saúde dos meus pacientes será a minha primeira preocupação.
Respeitarei os segredos a mim confiados.
Manterei, a todo custo, no máximo possível, a honra e a tradição da profissão médica.
Meus colegas serão meus irmãos.
Não permitirei que concepções religiosas, nacionais, raciais, partidárias ou sociais intervenham entre meu dever e meus pacientes.
Manterei o mais alto respeito pela vida humana, desde sua concepção.
Mesmo sob ameaça, não usarei meu conhecimento médico em princípios contrários às leis da natureza.
Faço estas promessas, solene e livremente, pela minha própria honra."

No século V a.c., Hipócrates (um médico grego) fundou os alicerces da medicina tracional e científica e deu um sentido de dignidade à profissão médica assente em normas éticas e de conduta, tanto no exercício profissional, como fora dele.
Hoje, no século XXI, Sócrates empossado jurou que «ninguém - nenhuma força política, nenhum sujeito institucional, nenhum parceiro social, nenhum grupo de cidadãos - ficará excluído do processo democrático, do direito a participar e do direito a ser ouvido». A ver, vamos...

*Versão clássica em língua portuguesa do juramento hipocrático, considerado um património da humanidade pelo seu elevado sentido moral e, durante séculos, tem sido repetido como um compromisso solene dos médicos, ao ingressarem na profissão.