quinta-feira, abril 14, 2005

Estes fartos amores... (II)

Ao fim de uns quantos "Amores Difíceis", tornou-se evidente que o programa até se poderia intitular de "Fartos Amores", dado que as dificuldades que em geral se esboçam na condução desse sentimento não estão só relacionadas com um universo único e unidisciplinar. Na sua génese ele reinvindica uma teia emocional que invoca a diversidade de afectos simultâneos.
Reclama muito mais a socialidade implicada do que a singularidade da sua essência (espiritual, sensorial e pragmática) que envolve. Ou seja, amam-se "muitos" e de "muitas" maneiras no mesmo espaço íntimo e com amores que não se substituiem uns aos outros nem competem entre si.
Com um património afectivo potencialmente "multiculturalista", eu (pelos 34 anos) revejo-me mais nos médicos do que na apresentadora da minha idade.
Ao contrário do instituído amor a que se impõe o estatuto histórico de incondicional e temeroso, considero que ele deve, acima de tudo, obrigar-se ao afecto para estímulo e dedicação do parceiro no tempo e na medida que ambos desejarem, e não pela necessidade da sua sobrevivência e justa-causa.
Qualquer um deve ao "outro", e a si próprio, a liberdade total na prática amorosa e nos considerandos ao objecto do amor que tantas vezes se assumem anómalos aos estereotipos e prioridades dos tempos.
No meu mundo sentimental o que lhe percepciono é invariavelmente singularizado por uma intensa anarquia do género e concentrado em expressões de filialidade vária nas emoções do imediato que lhe estão associadas.
Se, na construção da amizade, coabitam significativamente a sedução e a atracção, isso significa também que potenciam as relações sociais alguma da imaginação e criatividade erótica que idealizamos sobre o nosso amado.
Quer dizer então que a fronteira entre o amor filial e o amor relacional "exclusivo" é ténua e sensível, ou melhor, não é delimitável e oscila consoante a intensidade que se gera entre os envolvidos. Quantas vezes a afinidade intelectual e espiritual não nos emociona e impele para a procura no outro de um corpo idealizado que já não se contenta com identificações e afinidades gerais mas quer-se alimentado pela nova realidade romântica que se suscitou?
Esta metamorfose dos "papéis afectivos" é, religiosamente, o mais próximo e fiel da diversificação e da individualidade que os meus afectos assumem e até encontram feed-back comunicacional (isento de juízos de valor como nos "Amores Difíceis"). E, se por acções externas me ameaçam contrariedades internas, este programa democrático logo se apronta a apaziguar-me a contrariada "cultura e dialéctica amorosa" e estimula narcisismos para o meu coração indeciso ultrapassar a má-língua das lógicas normativas.
Porque, no fundo, é um programa que se faz a nós, enquanto amantes incondicionais, como na vida é suposto nos fazermos aos outros por amor, honrando nele a reciprocidade, a partilha generosa e, acima de tudo, a confiança do sentimento que serve o aprofundamento espiritual e amoroso entre dois entes.
Acolher o outro graciosamente, enquanto entidade amorosa, despojando-nos do "nós" anterior para abraçarmos a mutualidade que testemunha o novo "eu", é que significa a verdadeira conciliação dos sentidos afectos e poéticos dos amantes. Dos veículos da verdadeira infinitude e plenitude da natureza humana: a generosidade do amor.
A perfeição em ''ser" o que somos para os outros em sentimento não se trata de método mas da essência em que evidenciamos o "ser" que somos, fomos e pretendemos ser em novos sentimentos.
Fazemo-nos nele e nele nos esgotamos como essência de vida.
Uma "Sessão da Meia-noite" excelente para, ás tantas, nos lembrarmo-nos da passagem amorosa do "outro", logo ali no sofá...

[Apanhámos um combóio.

Impelia-nos o desejo da liberdade pela liberdade de cada um.
Éramos dois em algumas estações,
éramos só um noutras.

No regresso ao que não queríamos, falaste de paixão e amor,
mas não de "nós" neste mundo frágil.
Talvez noutro combóio,
noutro tempo suspenso,

nos possamos amar sem saber quando a viagem acaba,
quando "nós" nos extinguimos.
Até que o adeus substitua o olhar,
a palavra apaixonada nele sufocado,
noutro combóio...]