Comédia social
Quem opta por companhia canídea no seu lar, opta também pela perda de certo respeito e anonimato no seu bairro. Perdemos a grandeza do "Sr. Tal" para passarmos ao acessório "De". Sempre que faço com Comédia a volta das 'mijinhas' na rua dou por mim sujeito à marginalização acessória dos "De", porque eles, "Os cães", é que são os engraçadinhos e simpáticos. Adiante.
Ontem a tarde foi épica e em vez de servir o confessionário e a má-língua da vizinhança, vi-me no papel de palhaço da curiosidade da mesma.
Casaco vestido e trela à mão, abalo para a rua com Comédia para a rotina que começa logo na porta da rua e junto à cabine telefónica na esquina.
Não sei o que há ali de especial, mas Comédia faz sempre questão de estrear a bexiga aflita naquele poste esbranquiçado. Talvez seja pelo resguardo discreto dos genitais, não sei... a mim é que me 'lixa', que quando lá está gente a telefonar obrigo-me a fingir que não vejo e a seguir fazer-me de parvo com o coitado do parvo que acha que tem as calças mijadas.
É que ele não percebe (e na verdade não tem que perceber) que me é quase impossível suster a correria desenfreada desta 'senhora' que está «ai, ai», há não sei quantas horas, e assim que abro a porta zarpa doida para aquele canto.
Peço mil e uma desculpas pela abundância amarelada e espessa do orgulho de Comédia - que defende como as horas densas da sua clausura diária e néctar genuíno de identidade -, e macaqueio um responso e uma 'sapatada' nela. A seguir piro-me não vá o 'gajo' entender alguma indeminização.
A seguir uma garagem e o cumprimento barulhento do cão do outro lado de lá do portão verde (que já está de focinho enfiado no buraco da vala a pressentir-nos) e o mesma à dona na janela que me diz monotonamente «que não dormiu nada esta noite» e mostrar-se curiosa por saber se a mesma espertina teimosa tinha estado lá por casa.
«Boa tarde» para aqui, outra 'mija' para ali e nisto tudo fico a saber que afinal o sono da vizinha não tinha nada de mais. Quem tinha era o marido - taxista - que há falta de clientes deve ter passado a noite na 'pielada' e não a sossegou com o roncar desatinado.
«Muito boa tarde então» e despeço-me rápido e avançando pela rua, não vá ela lembrar-se de qualquer tópico mais para comunhão.
Ás vezes as vizinhas são tantas que mais parece uma novela da vida real. Do arrufo trivial à querela a raiar a violência doméstica, tudo me acompanha irremediavelmente até voltar outra vez a casa.
Ora, nesse dia, mal tinha acabado o quarteirão, reparei que nos acompanhavam dois simpáticos cães que desconhecia e pareciam íntimos de Comédia.
- RRRRRRRRRRR….. RRRRR….
Durante alguns minutos afagaram-se uns aos outros - o que até era interessante dada a indiferença de Comédia a estranhos - e ficaram ali parados cheirando-se até mais não. Todos muito expontâneos e com notada afeição entre si.
- RRRRRRRRRRR….. RRRRR….
Os quatro pela rua abaixo. Eles empoleirados como cabritos em cima uns dos outros e ela neles. Um rosnava delicado, o outro respondia-lhe numa nota acima e Comédia surpreendia-me tão interessada que estava naquela competicão saudável de machos.
Mais passada, menos passada, por cada vez que um 'mijava' concentravam-se os três na fruição olfactativa e, se era Comédia, então ficávamos uns largos 15 minutos na exploração química e urinária.
Mais um «boa tarde como está?», uma troca de rosnadelas seguidas de outras tantas piruetas e outro «boa tarde, até logo».
No entanto, à medida que caminhava, o trio mostrava-se mais animoso, excitado e, na mesma medida, o interesse bairrista que parecia gerar um falatório em surdina.
- RRRRRRRRRRR….. RRRRR….
- Isso está animado hem...? - disseram-me.
- RRRRRRRRRRR….. RRRRR….
- Sua malandreca, ham?????? Não se ponha 'a pau' não!
As cenas deixaram de se suceder monótonas e perturbava-me a sensação de espionagem bem nas minhas ventas. Comédia não me parecia assimmmmmmm tão diferente e eu não via em mim nada de estranho: nenhuma roupa do avesso, nada agarrado aos sapatos e até me tinha penteado.
Continuava o alvo das atenções e não descortinava a 'cena'.
- RRRRRRRRRRR….. RRRRR….
Agora é que foram elas. Distraído com o 'borracho' da vizinha, de repente tropeço na trela, Comédia em mim e com isto levo um esticão tal no braço que fui parar bem no meio da estrada.
Cão pisado, cão ganido e um deles derrubado. O derrubado ergue-se do chão e morde no ganido. Comédia dá uma salto brusco e aí é que achei que estava alguma coisa mal.
Aqueles três não estavam em sintonia mas em luta e já com os caninos de fora e em cena. Todos no passeio se riam de mim, preso e enrolado que estava naquela trafulhada toda e na estrada a empatar o trânsito sem perceber como sair dali.
- RRRRRRRRRR….. RRRRR….
- Aurrrrrrrrf….. Aurrrrrrrrf….
Não tinha por onde meter as pernas e laçar a trela. Ás tantas não parecíamos quatro, mas dez, enrolados uns nos outros e a estorvar os carros parados para circo do bairro inteiro.
Todos ao molho com troca de galhardetes viris e eu desgraçado no molho, e aos esticões a Comédia já danada para se livrar dos forasteiros.
Os estupores dos cães não me libertavam e ainda levei com vaias obscenas dos condutores em procissão. Um grande e patético espectáculo:
- RRRRRRRRRR……..RRRR….. Linfócittos!!!!!
- Bolas! Comédia! Bolas! Comédia! Bolas! - dizia, ou melhor, gritava eu...
Não percebia como é que o passeio das 'mijas' se tinha transformado naquela manifestação desordeira e como uma meia-hora calma se registou em 45 minutos danados de cãozoada pisada, cãozoada ganida e cãozoada mordida.
A mim beliscaram-me a descrição e a deferência dos vizinhos - que muito estimo para minha privacidade - e a Comédia só lhe faltou cumprir algumas 'mijas'.
Como é que acabou a novela?
Ajudou-me a correr com os cães o tasqueiro - logo o 'tipo' com quem vou menos à bola! - e corremos esbaforidos para casa na companhia de uma poia agarrada à sola que não sei de onde é que apareceu.
Assim que alcançei o prédio atirei-a logo lá para dentro:
- Linfócittos.......... RRRRRRRRRRRR........
- Não me digas nada, 'caraças', fica aí!
- RRRRRRRRRR….. RRRRR….
Respirei, descansei antes de começar a limpar a trampa do sapato (mais a que deixei na soleira do prédio) porque se não me despachava ainda acabava a limpar as escadas todas.
- Que raio de turma senhora Comédia!!!!
- RRRRRRRRR…….RRRRRRRRRR……
Um grande e patético espectáculo!
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