O Dia do Livro
[CELEBRANDO O "VIRTUOSO" TIPOGRAFADO] Houve sempre escritores, amantes das Letras, amadores da escrita e leitores mais ou menos sérios, neste Portugal de leituras commumente periféricas à cultura prioritária e privilegiada pelo economato nacional.
Hoje, nas universidades, faz-se douto quem quiser e alienam-se os saberes que forem predilectos. Uma conquista da igualdade social nas últimas décadas e onde se consagra o direito natural à educação aliada à formação sócio-profissional e cultural do indivíduo activo.
O que é novo no mundo dos leitores, não é o género humanus estudioso ou erudito do universo ambíguo e omisso, nem a realidade explicada e verificada pela literatura portuguesa.
O livro é, e será sempre por excelência, um manual actualizado e moderno, e a malha comunicativa da verdade (interrogada, analisada e entendida), enquanto constante observável e universal.
Portanto, o que é hoje novo para os livros, fecunda no fenómeno da iliteracia (dificuldade em ler e interpretar, e escrever o entendimento do significado) e não na sua qualidade de reunir e compilar densamente o conhecimento, e na faculdade comunicativa de o providenciar simplificado (sabedoria) ou complexo (científico).
A globalização mercadora anda é a baralhar tudo e todos com a falácia tecnológica da inovação produtiva aliada à competitividade necessária da sua tradição social, esteta e erudita da literatura.
Sem se saber como, nem porquê, há um lado sombrio da contemporaneidade - a cultura de massas - e que deturpa o valor social deste mecenas histórico («o livro que nos abre as portas do mundo») e institui a sua prática e valor como uma variável relativa na ordem das "importâncias socialmente lucrativas". Uma tendência económica e egoísta do Materialismo Moderno e a cobiça que perverte a responsabilidade da comunicação "livrada" e reduze-a a simples apetencência comunicacional cuja profundidade não constrói, necessariamente, o indivíduo produtivo.
Para a sociedade de mercadorias, comércio e consumo, o Livro neste registo identitário é perigoso porque ameaça a modorra inculta do conformismo e a resignação acrítica!
Mas compram-se livros!
Constata-se,aliás, que milhares de livros «saiem em ombros» dos supermercados e das livrarias esperançosas e subviventes dos centros comerciais, mas, inexplicavelmente, a grande maioria desses são pouco ou nada lidos e - entre os mesmos - quase nenhuns o são em estudo para a formação do conhecimento.
É que os hábitos sociais actuais descobriram que fica sempre bem, em qualquer hora e lugar, dizer «o que alguém disse», mesmo que não seja coerente ou que não se descortine o seu significado.
Sabem-se de cor obras e autores que brilham nos escaparates da moda e até filosofamos no Metro os galardoados lusitanos pelo mundo fora!
Uma palavreada dinâmica circulando no quotidiano en vogue e que denuncia a aquisição literária suficiente, mas abstracta. Boceja-se o que «se diz por aí que se pode ler», mas não se interpreta o conhecimento e os propósitos concentrados nesses livros.
Toda a gente comprou «a inveja» mediática de José Gil - agora no top dos tops - mas discernir a sua (im)pertinência crítica (um processo que partilho), já é o «ver se te havias»!
Leitores superficiais (porque incapazes de reflectir sobre a acção dessa realidade) e profundos "desbocados" das ideias concebidas por outros (porque alheados do pensamento próprio e espírito crítico) sem adoptar a sua própria posição.
Mas compram-se livros!
É agora importante voltar às primeiras ideias da cultura de massas e esclarecer que não é na compra da inveja "giliana" e nessa abordagem leitora que está o mal. Trata-se, muito simplesmente, da aculturação consequente dos valores construtivos do empirismo crítico. Porque, qualquer um como eu,- nunca conseguirá estruturar intelectualmente a obra de José Gil sem laurear a pevide pela antiguidade erudita de Kant ou Descartes, de Satre ou Hegel, de Proust ou Thomas More, e, porque não, As Confissões de Santo Agostinho?
Ler, interpretar, racionalizar em simples (o "bom" dos leigos) e praticar inteligentemente a lógica da "dor de corno nacional", implica que nos cansemos na trapalhada toda do saber fundado e inequívoco dos clássicos realistas, utópicos, humanistas, estruturalistas, naturalistas, blá, blá, blá... Ora, para a modernidade sem tempo estético é, na verdade, uma grande estuchada de códigos e ficções desmedidas.
A inovação no campo da cultura das Letras - o mercado dos livros - é imprescendível para a evolução social da palavra e a humanização do seu valor de significado vivificado.
Deve a eloquência estética e a clarividência científica dos escritores, permitir-nos (enquanto leitores e educandos) alcançar a simplificação dessa complexidade!
Fazerem-se mecenas em associação com as "pontes" e poderes culturais e honrar o dever douto de iluminar o leigo estudado, o leigo superficial e até o leigo "analfabético"!
Resumindo, por mais livros que compremos e se tentem ler, trata-se do acto individual num colectivo social que - a meu ver - está pouco virado para o delírio escrito que nos pasma.
O que hoje é novo para os livros, é o futuro insólito do seu entendimento na cultura acrítica e no "choque globalizado" do tecido social dos leitores!
Em Portugal e, em particular, nas universidades que constróiem o cidadão evoluído, activo e produtivo, geram-se também tendências sócio-culturais que abraçam o pragmatismo perverso e a sua expressão lucrativa do Saber que se verifica no exercício.
A explicação está lá atrás e é pena que a sua vertente mais interessante para "dessossar" - as dimensões filósofa e estética do homem que não são quantificáveis pelas variáveis tradicionais mas que são variantes subjacentes do motum social do indivíduo interiorizado -, que essas fiquem tantas vezes de lado porque associadas aos «arrotos de uns tipos chatíssimmmooooooooooosssss».
No Portugal maioritário de José Gil domina a cultura-antítese da qualidade e valor empíricos do indivíduo e sacrificam-se os instrumentos cruciais para a sua consolidação:
- a educação (estrutura geradora de saberes) e a cultura (saberes encorporados e socializados em concreto);
- a correlação entre os dois no sentido da coerência empírica e da construção estética;
- o grau do conhecimento (domínio inteligente) estimulado pela sabedoria (reconhecimento da sua existência);
- e o nível cultural e educacional dos que praticam a leitura.
Figurado neste dia - além do prazer pelo caos criativo e ficcional - está a resistência da sabedoria crítica à sonolência iletrada e a lembrança de que o conhecimento escrito é quem educa a narração humana no caminho do entendimento sábio de si próprio e da palavra social que exercita.
[O "VIRTUOSO" TIPOGRAFADO] Abalei para a "Ponto de Encontro" - a minha livraria de vício no Saldanha - e comprei A Misteriosa Chama da Rainha Loana de Humberto Eco.
Deixo a quem ainda não tem um exemplar e deseja confirmar mais uma vez o grão genial do deserto fértil deste autor:
Riva la filotea, quer dizer, em dialecto,que está a chegar...
O quê? Tive a sensação de que aquele mistério me tinha acompanhado ao longo de muitos anos, com a pergunta em dialecto (mas eu falava em dialecto?) La riva? Sa cal'è c'la riva?
O que estará a chegar afinal: um livro de meditações e orações, um trólei, um eléctrico que circula à noite, um teleférico misterioso?
Abri o livro, com a sensação de estar a cometer um sacrilégio: era a Filotea do sacerdote milanês Giuseppe Riva, 1888, uma antologia de orações, meditações religiosas, com lista dos feriados e calendários dos santos. O livro estava quase desconjuntado e as folhas desfaziam-se com um simples toque dos dedos. Compactei-o religiosamente (não deixa de ser o meu ofício cuidar de livros antigos), mas vi que na lombada tinha gravado num rótulo vermelho, em letras douradas já desbotadas Riva La Filotea. Devia ser o livro de orações de alguém, que eu nunca ousara abrir mas que, com aquela grafia ambígua, sem distinção entre autor e título, me anunciava a iminência de alguma inquietante diligência presa por uma haste a um cabo eléctrico.»
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