Curiosamente, pela altura do primeiro Referendo, a questão subjectiva do seu valor de opinião votada não emergiu e o que dominou foi o espanto chocado em todos nós do evidente fracasso [derivado, em grande parte, pelas inúmeras campanhas (a)moralistas que condicionaram a transparência da opinião civil] neste processo nacional.
Ouvidas as vozes patrióticas e verificado que a maioria cedeu (in)voluntariamente à cultura católica que condena as mulheres que abortam - a mesma multidão onde algures habitam também as prevaricadoras - será então útil e mais verdadeiro o próximo referendo?
Será este segundo - e tangencial aos resultados anteriores - mais esclarecedor se, a priori, condicionado pelo inicial ("desinformado", "duvidoso" e "calado" pela castração cristã)?
Alguém, sinceramente, acredita que quem já fez um aborto não se envergonhe e o denuncie na praça pública moralista como forma de protesto pelo esquecimento a que é vetado ou pela cegueira ao sofrimento real e intransponível da mulher que o enfrenta?
Há quem acredite num referendo isento, sem discriminação de credos, raças e classes económicas?
Nas democracias modernas a liberdade de expressão pode ser "um pau de dois bicos" e, neste caso, é um "grande pau de obra".
A justiça social, no que o termo tem de mais abrangente, passa por garantir que, neste caso, se à prova provada de que o aborto não é figura-crime, então a sociedade não pode punir quem o faz.
Se virmos bem, quem é contra teoricamente não o faz, nem é obrigado a fazê-lo. E quem é a favor, não só não significa que o ambiciona fazer, mas, se um dia o fizer, pelo menos não poderá por isso ser condenado.
Abortar não passa por exercer pressão ou vontade sobre outrém. Passa e recai unicamente sobre nós próprios.
É neste paradigma simplificado - a subjectividade do Referendo e a pessoalidade implicada nesta opção violenta -, dificilmente passível de analisar com razão, que a classe política (excepto o Partido Comunista) reclama a praça pública.
É justo referendar o que não é passível de uniformizar e instituir como "universal"?
A lei que é importante (e que nunca se propôs a desbaratar a violência do aborto ou a vulgarizá-lo como anti-concepcional) é que permita que se possa ser acompanhado por apoio clínico e técnicos profissionais - não conferindo nunca ao aborto terapêutico e acompanhado, a expressão de "ciência ou metodologia clínica" por si só, lá por ele constar dos cuidado de saúde gerais.
O SIM assegura apenas que a sociedade executiva seja condolente e se solidarize com meios logísticos no apoio às mulheres que a ela recorrem para não pôr em causa a sua própria vida ou saúde.
Vamos agora referendar o suicídio? Não, claro que não.
Vamos referendar a eutanásia? Sim, claro que sim, mas pelas razões contrárias: garantir a democracia plena ao direito privado no tecido das legitimidades e liberdades colectivas.
Enquanto, em Portugal, cingir-mos as nossas noções e opções de "justiça política e social" pelos valores e juízos culturais que fazemos à nossa imagem, nunca questões como o aborto serão unânimes - nem mesmo entre os cientistas e clínicos de saúde -, nunca mesmo se a dimensão judicial da ética e moral deontológica for individualizada e não entregue à razão da ciência que é o garante da isenção e imparcialidade.
Quem vir no homem um indivíduo total, pleno das suas capacidades e dono do seu próprio corpo ( = a vida), dirá SIM à Despenalização do Aborto e defenderá que «vida dentro da vida» constitui um único ser e esse é (e deve ser sempre) livre de escolher.
Escolher para si próprio e sem prejuízo dos demais.
E se essa noção de autonomia e individualidade não for universal e democratizada, então todos os «óvulos, esperma e células» são passíveis um dia do julgamento social, ou seja, a globalidade da existência em cada um de nós não é, afinal, totalmente nossa e nem dispomos 100% de fazer o que quisermos com ela e a sua dignidade.
Estranhos os nossos dias... a ciência procura a longevidade da vida como libertação total do hominídeo e, ao mesmo tempo, os dogmas de fé entendem-na exclusivamente devedora a Deus - o único proprietário -, e só lhe consideram importante a autosuficiência e autonomia social enquanto entidade crente e unida a um desígnio único: o encontro com o Senhor.
A propósito da eleição do último Pater Patrum, encontrei um "fiel do rebanho" que me surpreendeu e que ouso chamá-lo aqui: Pio XII.
Este Ilustre Divino afirmava nas suas encíclicas que: «não se devem utilizar meios excessivos para prolongar a vida. Que isso não é obrigatório como é moralmente condenável, prolongar o sofrimento das pessoas dessa forma».
Ou seja, a própria Igreja reconheceu - nessa altura - haver no segmento da Vida um estágio de autonomia e dignidade de opção sobre a mesma.
O referendo do Aborto trata disso mesmo!
Nos estados laicos como o nosso, há dois tipos de leis:
- as leis reguladoras que visam regulamentar e promover o que é comum a todos em exercício comunitário;
- as leis proteccionistas que fiscalizam e protegem a vulnerabilidade dos que não estão consignados individualmente na lei.
A lei do aborto é uma lei de índole proteccionista e ilustra o "princípio" de que a ditadura executiva do colectivo não se deve sobrepor ao direito individual de escolha e impossível de legislar em decreto e leis.
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