Aborto
No mini-parlamento de reflexão social e cidadã lá de casa discute-se a prioridade, este ano, do Referendo sobre o Aborto, e, entre as várias pessoas de sentimentos democráticos imputáveis surgiu a discórdia insolúvel e subjacente à moratória íntima de cada um.
Na lúcida e escrupulosa razão de que a sociedade deve ser auscultada (2), inclusivé na sua legitimidade complexa e nas suas dimensões ambíguas do Interesse (3), há elementos de diferendo que não se resolvem.
O Referendo, enquanto figura constituinte nos instrumentos democráticos de "alta-decisão" reúne o consenso total, mas a sua representação fiável de uma subjectividade concreta, como a do sentimento violado de quem aborta, já determina outras nuances bem menos transparentes e mais relativas.
A evolução da cultura do colectivo (justo, livre, imparcial, etc) reforça hoje, mais do que nunca, que sobre a cabeça de todas as diferenças individuais se possa exercer a vontade do colectivo maior (revisto normalmente nas leis e políticas legais) mas salvaguardando o garante da não sobreposição dele em prejuízo do direito privado de cada um.
É aqui que a figura-tipo do Referendo (o universo pessoal e privado assumindo a dimensão prática e legítima do colectivo) se revela incoerente, senão perigoso: é que ao mesmo tempo que se trata da acção simples de auscultação da vontade maioritária é, no entanto, também a ferramenta perversa que permite consciencializar "em massa" uma ideia falsamente indiferenciada e a seguir considerar politicamente "a prática" sobre todas as outras que não suaram nesse processo. Ou seja, a marginalização do direito individual pelo direito comunitário (lei social) e necessidade (in)consensual.
E se amanhã o mesmo universo maioritário mudar de idéias?
O que pode significar este mecanismo referendário, quando ao alcance dos caprichos intemporais das maiorias?
O que eticamente se honra e se escrupula "cultural e legalmente", sempre que a sociedade decide referendar um assunto e uma determinada expressão dos direitos básicos e individuais que a "incomoda" moralmente?
Quantos referendos pode valer uma única causa?
(1) Artigo 170.º da Constituição da República - Processo de urgência: 1. A Assembleia da República pode, por iniciativa de qualquer Deputado ou grupo parlamentar, ou do Governo, declarar a urgência do processamento de qualquer projecto ou proposta de lei ou de resolução.
(2) Artigo 115.º da Constituição da República - Referendo.1. Os cidadãos eleitores recenseados no território nacional podem ser chamados a pronunciar-se directamente, a título vinculativo, através de referendo, por decisão do Presidente da República, mediante proposta da Assembleia da República ou do Governo, em matérias das respectivas competências, nos casos e nos termos previstos na Constituição e na lei; 2. O referendo pode ainda resultar da iniciativa de cidadãos dirigida à Assembleia da República, que será apresentada e apreciada nos termos e nos prazos fixados por lei.
(3) Artigo 115.º da Constituição da República - Referendo.
3. O referendo só pode ter por objecto questões de relevante interesse nacional que devam ser decididas pela Assembleia da República ou pelo Governo através da aprovação de convenção internacional ou de acto legislativo.
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