quarta-feira, abril 27, 2005

Eu, afinal


Quando não escrevo, o tempo imprimi-se no corpo dos dias, imbuído pelo motum perene e doloroso da minha insignificância versada

[Sou]

[Hoje]

[Eu]

[Só]

[A escrita

[Só]

[Afinal]

[Eu]

terça-feira, abril 26, 2005

Sexo-expresso (XV) ou Sexo cristão

«A sexualidade não pode ser reduzida ao casamento, como faz o cristianismo. Nem pode ser reduzida ao amor, como fazem os românticos. Mas também não pode ser reduzida a mera necessidade física, como quis Kinsey e querem muitos progressistas.
O sexo é muitas coisas em diferentes momentos e diferentes situações.
Assistimos progressivamente a uma substituição de uma ideologia sexual por outra. Em vez de uma ideologia repressiva oficial, o discurso oficial é agora oficialmente permissivo.
Ao contrário de alguns colunistas católicos a permissividade e a promiscuidade não me incomodam absolutamente nada. A moralidade é uma decisão individual.
Mas acho preocupante que um discurso sobre a sexualidade que se afirme "científico" se afaste de uma atitude descritiva e factual.
Não faz sentido passar dos preconceitos ignorantes de um cura de aldeia para os preconceitos desvairados de um higienista de arrabalde. É preciso conhecer as coisas tal como são. Depois disso, para meu uso, reina a frase incompreendida de Santo Agostinho: Ama e faz o que quiseres
».
(Pedro Mexia, Grande Reportagem)

«Em relação a determinados aspectos da moral da Igreja (AI, AI, O QUE É ISTO?????), sobretudo na área da sexualidade, há coisas que me parecem particularmente tenebrosas e às quais não posso aderir (LIVRA, QUE ME IA DANDO UMA COISINHA!!!!!!). É o caso das posições relativas àcontracepção, inclusivamente quanto ao uso de preservativo numa fase como aquela que estamos a atravessar (BENDITA RATIO STUDIORUM!!!!!!! BENDITOS JESUÍTAS E SUA PEDAGOGIA CLERICAL!!!!!!!).
O posicionamento que continua a manter em relação ao celibato do sacerdócio, ou relativamente à ordenação das mulheres, à posição dos divorciados dentro da Igreja, aos homossexuais, são tudo situações com que não posso estar de acordo, sendo, como sou, cristão (CÁ PARA MIM NÃO ÉS..., ÉS UM NEO-NOVO CRISTÃO, UM JUDEU CONTEMPORÂNEO DA GLOBALIZAÇÃO SEXUAL...).
No entanto, tendo a coincidir com o pensamento da igreja relativamente ao aborto. A diferença está nas situações de violação (PRONTO! ESTRAGASTE TUDO! NINGUÉM POLÍTICAMENTE HONESTO CONCORDA EM INSTITUIR O ABORTO COMO UM GENÉRICO, É PRECISO - NÃO HÁ COMO FUGIR DOS NÚMEROS - REFLECTIR SOBRE O ENQUADRAMENTO LEGAL E CRIMINOSO DA MULHER QUE O FAZ. ACHAS MESMO QUE À LUZ DE UMA LEI JUSTA É-SE MENOS CRIMINOSO QUE ESSAS MULHERES AO NÃO CONSIDERAR A SUA IGNORÂNCIA FUNCIONAL, A SUA MISÉRIA, E EQUIPARÁ-LAS A VULGOS HOMICIDAS?)».
(Mário Cláudio, Expresso)

segunda-feira, abril 25, 2005

Passeando pelas brasas do Génesis

Preparo os dias da cinza. [1]
Os tempos sem sobressalto. [2]
A terra árida onde apenas o vento [3]
dispersa a inutilidade das ervas. [4]
Aguardo o silêncio fundo [5]
das vozes que não se ouvem. [6]
A sobra, a escuta inútil [7]
de uma alegria perdida. [8]

Agradeço os dias da cinza [9]
o tempo do coração inerte. [10]
Nele guarda-se o fogo [11]
que nem o desejo alcança. [12]
Espero no pó das brasas extintas [13]
o ressurgir de uma chama, [14]
escondida e de novo acesa [15]
no mais frio dos dias da cinza. [16]


Uma bela metáfora... bem escrita e poeticamente limpa.
Do ponto de vista "antropológico" e culturalmente falando... bastante interessante!
Uma pequenina poesia quase perfeita...
Um imaginário à luz do universo cristão que invoca os ambientes do deserto despovoado e árido como o lugar ideal para o jejum social e a união com Deus - o desprendimento interior (solidão) e no exterior «das vozes extintas».
Aqui, o sujeito abstracto estrutura-se num ritmo que evolui claramente de um lugar para outro em crescendo e só num sentido (em vez de circular, logo ausentar-se e regressar de novo). E, nessa sucessão, percebe-se que no I grupo versado se preparam os vários sujeitos equivalentes às acções do II grupo: [1]-[9]; [2]-[10]; [3]-[11]; [4]-[12]; [5]-[13]; [6]-[14]; [7]-[15]; [8]-[16].
Se trocarmos as voltas aos pares e casarmos os novos versos, reunimos um todo mais condolente da inspiração bíblica («Os homens são Pó e Cinzas»).

Pode-se imaginar um corpo narrativo eloquente e desenhado nas «cinzas» que, afinal, oferece outra alegria e reserva mais esperança no seu tempo qualitativo.

Preparo os dias da cinza
tempos sem sobressaltos inúteis
áridos mas dedicados à escuta
do silêncio fundo da alegria perdida.


Agradeço o tempo inerte do fogo
guardo no pó extinto das cinzas
o ressurgir das chamas escondidas
que de novo me alcançam
nos dias frios do desejo


Uma "espinha" hedonista com o mesmo código erudito, mas mais feliz e altruísta - porque mais humano na fatalidade da acção.
Permite-nos um tempo espiritual menos inglório (porque além de necessário é natural) e não menos sujeito à condição do alcance póstumo em detrimento de um tempo anterior cumprido.
É nesta dimensão que me perturbam os versos. No significante poético encurralado no I e II grupos (o Júbilo devoto e a Conversão aceite) e no absolutismo destes dois universos de desenvoltura (o antes e depois «das cinzas», o tempo «útil ou inútil» e o coração «alegre ou triste»), forçamente confinados aos valores positivos/negativos e na boa/má correspondência, como tal, merecedora ou não do descanso nas «cinzas».
Porque não um imaginário livre do juízo de valor intrínseco, ao contrário do acto dividido que pressupõe uma evolução qualitativa e serve para se justificar a si próprio?
Como podiam estes versos ser mais generosos, se neles urge a expiação pecaminosa?
Não, não podem.

O Poeta faz juz à sua vulnerabilidade religiosa e expõe-se, subterrâneo, à violência do acto de contrição. Oferece-se em fé ao carpir do "violado" e no intuito de alcançar a poética divina do seu tempo mortal de peregrino e imortal de cristão.
Se eu não soubesse da condição espiritual do Poeta (sugerida que está na legenda inicial), podia interpretar nesta poesia a linguagem simbólica da expressão realista do "Homem Novo" (sem abstrações sobrenaturais), que consegue revelar a mesma intensidade de sentimento na sua existência estética aliada ao pensamento evolucionista e isenta da emancipação individual projectada no "servilismo" ao Espírito Santo.
Lembrar-me-ia de Thomas Mann,

«A nossa alegria diante dum sistema metafísico, a nossa satisfação na presença de uma construção do pensamento, em que a organização espiritual do Mundo se mostra num conjunto lógico, coerente e harmonioso, tudo depende sempre e eminentemente da estética; têm a mesma origem que o prazer, que a alta satisfação, sempre serena afinal, que a actividade artística nos que proporciona quando cria a ordem e a forma que nos permite abranger com a vista o caos da vida, dando-lhe transparência»,

porque o espanto poético de www.passearotempo.blogspot.com (no seu primordial, sobre a passagem espiritual do homem na vida) não me acusaria nunca a chancela mística, implícita e relacionada com o livro do Genesis.
Neste belo poema, une-nos a profundidade romântica do "ser", mas separa-me do Poeta o seu mapa filosófico e submisso às «cinzas».
Separam-nos os códigos da passagem humana e as metas do homem realizado no mundo idealista.
Para mim só existe um domínio existencial e vivificado e, consequentemente, um solo corpo narrativo em crescendo vivo...
Para o www.passearotempo.blogspot.com, existe alguém que se martiriza penosamente entre a penitência interior exigida pelas «cinzas», e a sublimação exterior no sentido da geografia redentora e divina... da união com algo que lhe é exterior e transcendente.
A cristandade assegurou-se que a morte, esse momento de vida "sumida", fosse um tempo de sentimento triste por directamente associado à perda de algo, neste caso a vida, mas agrega-lhe uma condicionante muito particular.
Acrescenta e destingue, que esse momento sentimental não tem - nem pode ter - a nobreza de valor humano se desprovido da avaliação da vida pecaminosa anterior.
Ou seja, a morte é triste.
Não só por perdemos a participação e presença na nossa vida daquele que "vai", mas principalmente porque essa entidade afectiva pode vir a "chumbar" no Tribunal dos Fiéis e na Instituição dos Penitentes.
Assim, infeliz não é só quem morre.

É também quem, ainda vivo, não se purifica e deambula espiritualmente-morto às portas da Presidência da Quaresma: «vivo penarás em oração» para quando morreres «voltares em pó à terra donde foste levado também em pó».
Aqui, à beira do meu amigo Poeta, desejo afectuosamente que, quando "sumido da vida" e sem o «tempo útil» da redenção, se passeie feliz na mesma.
Sem sobressaltos e, sobretudo, sereno no silêncio defunto, mesmo sabendo-o escondido no escolho da devoção e feito do «pó árido» dos penitentes dispersos pelos «dias frios e inertes do deserto» do pecado.
Se passeie, sobretudo, na poesia... onde os credos da vida feita suplantam «as sobras» da sua insignificância.
Mas, o que aqui é deveras importante, não é a minha suspeita sobre a inspiração do Poeta, mas o belo poema que me recorda um amigo espiritual que há-de sempre insurgir-se sobre a esterilidade da sua temporalidade vivificada.
Uma pequenina poesia quase perfeita!

domingo, abril 24, 2005

O Dia do Livro


Neste dia dedicado ao Livro, ou seja, à Palavra comunicada na especialidade impressa, só duas coisas me ocorreram lógica e irresistíveis: comprar um livro e celebrar a oralidade vaidosa no espraiar crítico deste blogue.

[CELEBRANDO O "VIRTUOSO" TIPOGRAFADO] Houve sempre escritores, amantes das Letras, amadores da escrita e leitores mais ou menos sérios, neste Portugal de leituras commumente periféricas à cultura prioritária e privilegiada pelo economato nacional.
Hoje, nas universidades, faz-se douto quem quiser e alienam-se os saberes que forem predilectos. Uma conquista da igualdade social nas últimas décadas e onde se consagra o direito natural à educação aliada à formação sócio-profissional e cultural do indivíduo activo.
O que é novo no mundo dos leitores, não é o género humanus estudioso ou erudito do universo ambíguo e omisso, nem a realidade explicada e verificada pela literatura portuguesa.
O livro é, e será sempre por excelência, um manual actualizado e moderno, e a malha comunicativa da verdade (interrogada, analisada e entendida), enquanto constante observável e universal.
Portanto, o que é hoje novo para os livros, fecunda no fenómeno da iliteracia (dificuldade em ler e interpretar, e escrever o entendimento do significado) e não na sua qualidade de reunir e compilar densamente o conhecimento, e na faculdade comunicativa de o providenciar simplificado (sabedoria) ou complexo (científico).
A globalização mercadora anda é a baralhar tudo e todos com a falácia tecnológica da inovação produtiva aliada à competitividade necessária da sua tradição social, esteta e erudita da literatura.
Sem se saber como, nem porquê, há um lado sombrio da contemporaneidade - a cultura de massas - e que deturpa o valor social deste mecenas histórico («o livro que nos abre as portas do mundo») e institui a sua prática e valor como uma variável relativa na ordem das "importâncias socialmente lucrativas". Uma tendência económica e egoísta do Materialismo Moderno e a cobiça que perverte a responsabilidade da comunicação "livrada" e reduze-a a simples apetencência comunicacional cuja profundidade não constrói, necessariamente, o indivíduo produtivo.
Para a sociedade de mercadorias, comércio e consumo, o Livro neste registo identitário é perigoso porque ameaça a modorra inculta do conformismo e a resignação acrítica!
Mas compram-se livros!
Constata-se,aliás, que milhares de livros «saiem em ombros» dos supermercados e das livrarias esperançosas e subviventes dos centros comerciais, mas, inexplicavelmente, a grande maioria desses são pouco ou nada lidos e - entre os mesmos - quase nenhuns o são em estudo para a formação do conhecimento.
É que os hábitos sociais actuais descobriram que fica sempre bem, em qualquer hora e lugar, dizer «o que alguém disse», mesmo que não seja coerente ou que não se descortine o seu significado.
Sabem-se de cor obras e autores que brilham nos escaparates da moda e até filosofamos no Metro os galardoados lusitanos pelo mundo fora!
Uma palavreada dinâmica circulando no quotidiano en vogue e que denuncia a aquisição literária suficiente, mas abstracta. Boceja-se o que «se diz por aí que se pode ler», mas não se interpreta o conhecimento e os propósitos concentrados nesses livros.
Toda a gente comprou «a inveja» mediática de José Gil - agora no top dos tops - mas discernir a sua (im)pertinência crítica (um processo que partilho), já é o «ver se te havias»!
Leitores superficiais (porque incapazes de reflectir sobre a acção dessa realidade) e profundos "desbocados" das ideias concebidas por outros (porque alheados do pensamento próprio e espírito crítico) sem adoptar a sua própria posição.
Mas compram-se livros!
É agora importante voltar às primeiras ideias da cultura de massas e esclarecer que não é na compra da inveja "giliana" e nessa abordagem leitora que está o mal. Trata-se, muito simplesmente, da aculturação consequente dos valores construtivos do empirismo crítico. Porque, qualquer um como eu,- nunca conseguirá estruturar intelectualmente a obra de José Gil sem laurear a pevide pela antiguidade erudita de Kant ou Descartes, de Satre ou Hegel, de Proust ou Thomas More, e, porque não, As Confissões de Santo Agostinho?
Ler, interpretar, racionalizar em simples (o "bom" dos leigos) e praticar inteligentemente a lógica da "dor de corno nacional", implica que nos cansemos na trapalhada toda do saber fundado e inequívoco dos clássicos realistas, utópicos, humanistas, estruturalistas, naturalistas, blá, blá, blá... Ora, para a modernidade sem tempo estético é, na verdade, uma grande estuchada de códigos e ficções desmedidas.
A inovação no campo da cultura das Letras - o mercado dos livros - é imprescendível para a evolução social da palavra e a humanização do seu valor de significado vivificado.
Deve a eloquência estética e a clarividência científica dos escritores, permitir-nos (enquanto leitores e educandos) alcançar a simplificação dessa complexidade!
Fazerem-se mecenas em associação com as "pontes" e poderes culturais e honrar o dever douto de iluminar o leigo estudado, o leigo superficial e até o leigo "analfabético"!
Resumindo, por mais livros que compremos e se tentem ler, trata-se do acto individual num colectivo social que - a meu ver - está pouco virado para o delírio escrito que nos pasma.
O que hoje é novo para os livros, é o futuro insólito do seu entendimento na cultura acrítica e no "choque globalizado" do tecido social dos leitores!
Em Portugal e, em particular, nas universidades que constróiem o cidadão evoluído, activo e produtivo, geram-se também tendências sócio-culturais que abraçam o pragmatismo perverso e a sua expressão lucrativa do Saber que se verifica no exercício.
A explicação está lá atrás e é pena que a sua vertente mais interessante para "dessossar" - as dimensões filósofa e estética do homem que não são quantificáveis pelas variáveis tradicionais mas que são variantes subjacentes do motum social do indivíduo interiorizado -, que essas fiquem tantas vezes de lado porque associadas aos «arrotos de uns tipos chatíssimmmooooooooooosssss».
No Portugal maioritário de José Gil domina a cultura-antítese da qualidade e valor empíricos do indivíduo e sacrificam-se os instrumentos cruciais para a sua consolidação:
- a educação (estrutura geradora de saberes) e a cultura (saberes encorporados e socializados em concreto);
- a correlação entre os dois no sentido da coerência empírica e da construção estética;
- o grau do conhecimento (domínio inteligente) estimulado pela sabedoria (reconhecimento da sua existência);
- e o nível cultural e educacional dos que praticam a leitura.
Figurado neste dia - além do prazer pelo caos criativo e ficcional - está a resistência da sabedoria crítica à sonolência iletrada e a lembrança de que o conhecimento escrito é quem educa a narração humana no caminho do entendimento sábio de si próprio e da palavra social que exercita.
Mas vendem-se livros!

[O "VIRTUOSO" TIPOGRAFADO] Abalei para a "Ponto de Encontro" - a minha livraria de vício no Saldanha - e comprei A Misteriosa Chama da Rainha Loana de Humberto Eco.
Deixo a quem ainda não tem um exemplar e deseja confirmar mais uma vez o grão genial do deserto fértil deste autor:
«É que tinha entrevisto um Livro, pequeno, com encadernação castanha, no mármore da mesa de cabeceira da direita e tinha ido abri-lo sem hesitar, dizendo para comigo "riva la filotea".
Riva la filotea, quer dizer, em dialecto,que está a chegar...
O quê? Tive a sensação de que aquele mistério me tinha acompanhado ao longo de muitos anos, com a pergunta em dialecto (mas eu falava em dialecto?)
La riva? Sa cal'è c'la riva?
O que estará a chegar afinal: um livro de meditações e orações, um trólei, um eléctrico que circula à noite, um teleférico misterioso?
Abri o livro, com a sensação de estar a cometer um sacrilégio: era a
Filotea do sacerdote milanês Giuseppe Riva, 1888, uma antologia de orações, meditações religiosas, com lista dos feriados e calendários dos santos. O livro estava quase desconjuntado e as folhas desfaziam-se com um simples toque dos dedos. Compactei-o religiosamente (não deixa de ser o meu ofício cuidar de livros antigos), mas vi que na lombada tinha gravado num rótulo vermelho, em letras douradas já desbotadas Riva La Filotea. Devia ser o livro de orações de alguém, que eu nunca ousara abrir mas que, com aquela grafia ambígua, sem distinção entre autor e título, me anunciava a iminência de alguma inquietante diligência presa por uma haste a um cabo eléctrico.»

sábado, abril 23, 2005

Sexo-expresso (XIV) ou Sexo viril

O João Tigela, esse só era admirado no dia da capeia. Músculos de garanhão, forçudo como o boi da semente, atrevido e ligeiro como os galgos do Ramenhos, era o primeiro à galha do forcão e o homem-espectáculo à frente dos touros.
Não, nesse dia não havia pai para ele.
E cada rapariga, no mais íntimo dos seus pensamentos, alimentava um fugidio desejo sensual de casar com ele.
E a Ilda não era excepção até porque as suas condições sociais se equivaliam, e porque a Alzira se entrepunha entre ela e o Cafurras.
E, destravada como era, não esteve com mais aquelas.
Quando o Tigela, para se livrar de uma investida da fera, teve que saltar para a roda de um carro qualquer e agarrar-se aos vestidos das assistentes, encontrou fogo nos olhos da Batocas
e fez-lhe uma piscadela que se lhe cravou no coração.
Excerto do "O Crime da Escanabada" de Bernardino Henriques

Ilustração de Paula Rego para o livro "Jane Eyre" da Editora Cavalo de Ferro

Apesar de 93% dos portugueses considerar que no casal tanto o homem como a mulher devem trabalhar fora de casa, 78% que considera que as crianças sofrem quando a sua mãe trabalha e, como tal, cerca de metade da população acha que a mulher devia ficar em casa até os filhos fazerem seis anos.
Estudo de Karin Wall do Instituto de Ciências Sociais e de Lígia Amâncio do ISCTE - 2005

sexta-feira, abril 22, 2005

Precisamos de mais professores e menos padres nas nossas vidas rápidas* (cont.)

Em 1925, G. K. Chesterton** - um pensador cristão inglês - afirmava que fora «o surgimento e fortalecimento da igreja cristã na Europa pagã que permitiu a civilização ocidental existir na forma como é. Culturalmente estruturada e humanamente evoluída». E que se assim não o tivesse sido «a Europa seria hoje muito parecida com a Ásia», primitiva.
Ache-se o que se achar, religiosa, laica ou agnosticamente, a presunção é absurda e ofensiva e reúne fundamentalmente os princípios da crença e da absolvição dos pecadores (a espécie humana) à luz da Igreja. É aqui que desconfio da "grande peregrinação".
Não questionando algumas obras e exercício humanista da Instituição, espreitam, no entanto, variáveis desconcertantes e perigosas nas interpretações teológicas:
- o que significa passearmos a “existência territorial” só com vista, e em exclusivo, ao alcance da vida-Mor no Paraíso, onde só ela se realiza?
- como se garante a infalibilidade da justeza desse percurso, se o «desígnio abençoado» não está encorporado nessa caminhada, mas só no que alcançamos no final - quando «os cristãos que viveram na graça de Deus são chamados à santidade»?
- há valor de razão e legitimidade no "culminar" quando o fim se valoriza déspota e por si mesmo, e não como o primeiro de muitos - sendo então importante que nunca se pare de caminhar?
- como garantir a qualidade de exequibilidade, se os “entretantos” do durante são secundarizados?


O meu problema com a religião (não com a religiosidade ou fé) é que temos de viver com ela mesmo que não a reconheçamos nas nossas "doutrinas pessoais" - podemos abraçá-la, coabitar e tolerá-la ou negá-la em crítica social.
O que quer que adoptemos filosoficamente não impede que ela se envolva - como sempre fez - nas várias esferas da sociedade.
Não podemos vetá-la ao esquecimento, nem deixar de a acompanharmos (“purga” fiscal), porque, como a própria história mostra, ela pode vir a perseguir-nos se livre da regulação democrática, que, a meu ver, já tomou conta, e de maneira criminosa, de séculos suficientes da civilização.
Ninguém deseja que isso volte a acontecer, nem mesmo a própria instituição.

A jornada da cristianização dos povos mostrou-nos que, em nome de deus, a mesma mão que matava a fome, matava também o esfomeado por desejar a propriedade desse poder.
Nunca haverão garantias de que o fenómeno da cristandade inquisitorial dos hereges não se renove e substitua - por razões óbvias de sobrevivência “da empresa” - pela religião politizada. Principalmente se os estados democráticos e laicos não tiverem palavra a dizer sobre a sua possível e hipotética "ingerência" fora do seu meio.
A prova disto e da falibilidade dos credos éticos está no exercício das igrejas e deuses por todo o globo.
Há exemplos mais que suficientes para que não seja certo que, quando a «mão divina» se senta na cadeira do poder social, ela não proteja ou compactue com a tirania e a perseguição que serve os interesses dominantes e falsos democratas, mesmo que disfarçados por retóricas santimoniais da "legitimidade cristã".
A questão, no fundo, é entre valores de ética e moralidade, que os da justiça são para os tribunais humanos certificados, e não para os divinos e misteriosos.
Encarando a Igreja como um universo privado e independente de ideias, sobra-nos o respeito - mesmo que a contragosto - das suas leis internas ou o campo subjectivo e relativo das teorias.
Credo por credo, opto pelo meu, e sem impô-lo a outrém!
Por que é que João Paulo II designava o pecado como uma transgressão contranatural, «um acto suicida»?
Também não é contranatura penar pela graça de uma entidade que nunca alcançaremos em obra realizada e viva (e que assusta qualquer alma só com a grandeza que lhe é atribuída)?

Não é, antes de tudo, ferimo-nos a nós próprios e indignar a singularidade e beleza desta espécie evoluída que não devia valer menos que toda a obra vinda do "céu"?
Não é negar e desprezarmo-nos numa comparação de matéria e energia que não faz sentido nenhum, porque o único homem que conhecemos é de “carne e osso“ e que eu saiba ainda só chegou à Lua e numa aeronave?
Recusar a nossa própria natureza de "elemento vivo e actuante" na existência vivificada, não é negarmos a nós próprios?
Valor moral por valor moral, opto pelo meu: eleito em voto consciente e livre!
Quem me garante que amanhã um católico não determine a perseguição religiosa aos laicos "terroristas" que constituem uma ameaça para si?
O que me importa neste futuro papa é que a sua "potencialidade" humana assegure que o «choque entre os que acreditam e os que não acreditam, não domine os valores de liberdade e justiça» da futura humanidade, nas palavras de Jacques Delors.
A cidadania - expoente máximo do modernismo e a minha religião - não é uma opção, é, sobretudo, “O” imperativo cultural e humanista a doutrinar.
O único respeitador e conciliante possível para que as expressões várias de fé não saiam do seu terreno privado (onde são livres de fazer o que quiserem) e não interfiram e se sobreponham à liberdade universal e à visão nobre e bela do mundo centrado na grande obra: o homem unificado no feito humano. O fumo branco da liberdade universal do homem num mundo de homens vários!


(*)Ou «Em todas as terras do mundo há um "archote" - o mestre-escola - e um "extintor" - o pároco», Victor Hugo
(**)G. K. Chesterton (1874-1936) produziu literatura que ensina como se faz filosofia cristã de primeira qualidade e pretendeu oferecer respostas cristãs ao pensamento moderno. São conhecidos alguns livros como, por exemplo, "Orthodoxi" (Nova Iorque, 1908), "Heretics" (Londres, 1905), e "The Everlasting Man" (São Francisco, 1925).

terça-feira, abril 19, 2005

Precisamos de mais professores e menos padres nas nossas vidas rápidas*


(papa - termo designado pela junção das primeiras duas sílabas de duas palavras latinas: pater patrum - "pai dos pais")
Não tenho a certeza - que ela há muito que me prega partidas - e não juro, porque, se há alguma coisa pela qual "não ponho as mãos no fogo", é pela memória.
Nunca me ocorreu "tricotar" objectos do meu analfabetismo religioso, a não ser quando a sua acção prescrita estimula o carácter curioso e a cidadania nele embebida. Ou, claro, quando esbarramos, ambos, no terreno universal das concórdias: a sociabilidade emergente. Convenhamos, poucos ou nenhuns ainda não se imiscuíram na grande "papada" (grande vaga papista dos Media) em que a civilização está suspensa e expectante, e que é o luto da representação honorífica e absoluta de deus na terra - João Paulo II - e a vinda do seu sucessor e dessa transcendência que se inventou no séc. I d.C. (entre 0032-0067, representado pelo apóstolo Simão) do «chefe da igreja» nomeado em São Pedro.
Teoricamente, tratar-se-ia do "iluminado" das duas grandes questões da humanidade sobre a vida: donde viemos e como devemos fazer luz ao virtuosismo dessa apetência, ou seja, como devemos viver.
A sociedade de religiosos e não religiosos chama-lhe Papa e trata-se da «cabeça visível da Igreja», da "toponímia" moderna de São Pedro, «Vigário de Jesus Cristo na terra», ou seja, o seu pastor-mor.
Para mim, leiga destes domínios misteriosos, é simplesmente um "acaso" inspirador: a promoção inesperada de um homem simples e desprovido de "iluminações" para titular especial da acessoria de "Assistência ao Espírito Santo".
Coitado, foi-lhe pesado o último sopro de vida, "bem pesado" mesmo...
Além de suster o seu próprio peso quando, em Roma, o crucificaram de cabeça para baixo, ainda personificou (para "todo o sempre" mais longo que imaginem) o pendor da primeira short-story que surgiu no mundo:
- um universo criado em seis dias por uma força suprema que só descansou ao sétimo. Um gigantesco genoma rácico produzido e amassado por um deus do céu (por que é que tudo o que é Objecto Não Identificado - ONI - vem sempre do céu???), durante seis dias e mais um para os acabamentos (suspeito que foi neste sétimo dia - preguiçosa e absentista - que a missão produziu os "defeitos" que nós conhecemos...)
Se não me engano, a jurisprudência católica já promoveu entre o séc. I e o séc. XX à volta de 254 profissionais para o magistério ordinário dos ensinamentos cristãos aos crentes e fiéis.
Um rebanho valente para conduzir os "credos" temerosos e, indulgentemente, tolerar "os outros" como eu, que os menosprezamos filosoficamente porque damos privilégio à estética espiritual paterna e à criatividade romântica materna.
É à sombra desse manto evolucionista e romântico do homem moderno (com visão científica, historicista, racionalista, etc., e prevalecendo o optimismo humano) que reafirmo a convicção de que disciplinas do saber que não se propõem a instrumentos da racionalidade humana - o poder da intervenção clarividente na dimensão humanizada da "problemática" -, não servem os propósitos fundamentais da minha razoabilidade: a inteligência humana desenvolvida para a revelação da sua própria potencialidade, e não da sua sobrenaturalidade divina.
O delírio - no seu imaginário mais fértil e inumano - nunca é dispensável (!!!!!), mas, "ficcioná-lo" para enamoramento do espectador-seguidor para servir objectivos que não o visam como o beneficiário directo e (in)transmissível, é perverter a razão e a justiça (porque a justeza das coisas fez-se para os homens reais) de tudo o que ombreia a sua passagem rápida.
Desviar o homem da "matemática" social imprescindível à manutenção evolucionista e ao qualitativo "vivo" da sua espécie cultural, como parecem fazer os cristãos, é transformá-lo em exclusivo para a uma espécie de “espiritualidade territorial” - a do Céu e do Inferno que ultrapassam a massa do colectivo humano: «A capacidade de acolher a Deus está, às vezes, ofuscada pelo pecado. No homem o mal ocupa o lugar onde Deus quer viver. Por isto Jesus Cristo veio libertar o ser humano do domínio do mal e do pecado, e assim também de todas as formas de domínio do maligno, isto é, do diabo».
É como que forjar-lhe o egocentrismo da distinção divina por lucrativo ao seu descanso final: «O juízo particular é o que Deus faz ao homem, imediatamente depois de sua morte, para dar-lhe prémio ou castigo segundo suas obras».
Acções, ou melhor, a vida toda numa única acção globalizante, para que, na «hora da morte, os que estão totalmente limpos de pecado vão para o Céu para sempre».
Uma vida inteira a "coroar" a «graça de Deus sem alguma mancha de pecado ou dívida», que sabemos impossíveis na fragilidade natural, e para que não vão parar ao Inferno «pelos pecados» da sua susceptibilidade, mas sejam «perdoados e no Purgatório purificados totalmente».
Rogar a deus que perdoe, além do mal lucidamente malévolo que exercemos, também o mal que somos e concentramos intrinsecamente como espécie natural/imperfeita e social/adulterada que constituímos.
Lembro-me uma vez de ver minha avó - mulher, mãe e filha transmontana -, uma sobrevivente “aldeada” do Novo Mundo, prostrar-se em rezas no chão granítico e junto à lareira modesta, perante a notícia de uma indisposição grave do Santo Papa.
Ficou-me para sempre na memória esse dia. Emocionou-me dolorosamente aquele relâmpago sombrio da condição medieva e servil de uma camponesa que, subitamente, revela a sua força humana endurecida pelo amanhar da terra durense, reduzida ao véu místico e sensível da espiritualidade subvivente.
O que a minha avó nunca alcançou e meu pai nunca deixou, com ternura solidária, de lhe iluminar, era que se havia algum “papa“, não era um mas, com certeza, vários e mais genuínos.
O problema do meu pai com a religiosidade generosa das suas origens, era que de Madre Teresa de Calcutá ou de Satre, nunca chegaram à sua aldeia o amor pelos esfomeados sem o luxo vaticanista, ou a sabedoria crítica do conhecimento sem dogmas.
(*) «Em todas as terras do mundo há um "archote" - o mestre-escola - e um "extintor" - o pároco», Victor Hugo

segunda-feira, abril 18, 2005

A arte do passeio urbano

A arte do passeio urbano não se limita ao telurismo insalubre das fezes caninas, das buzinadelas em despropósito ruidoso ou do movimento paranóico dos outros.
Tudo anotações naturais de uma pauta mirabolante que só perturbam a percepção da “escalada” musical e que se sucede durante esta peculiar arte de fruição citadina que se caracteriza pelo intercâmbio sensorial entre a acção externa e os nossos próprios movimentos - a circulação.
Não nos limitamos a observar a passagem do tempo, enquanto soma de mudanças várias (timbre), como se estivéssemos simplesmente “plantados” numa qualquer esplanada.
Não, de maneira nenhuma.
Deambulamos quase aleatoriamente (partindo do princípio que a seguir ao primeiro passo os outros respondem pelos estímulos à volta) e o que se deseja é uma leitura e interpretação do ambiente – a pauta -, como se de uma onda sonora de sucessivas notas musicais se tratasse (novas posições sucedem outros espaços e novos tempos das coisas).
Gozamos a descoberta e o registo crítico - a reflexão - da multidão vibrante e do espaço arquitectónico invadido. O prazer incorporado do movimento humano – o nosso - na rede de sonoridades da cidade em constante agitação.
Anda-se, observa-se, pensa-se e com fantasia “faz-se música aos nossos ouvidos”!

A arte do passeio urbano, para quem aprecia, é uma espécie de “vagabundagem musical” (pauta) para captação de objectos de reflexão e criatividade consequente (frequências) que só o movimento global da multidão (melodia) permite.
Somos viajantes solitários (este registo implica a ausência de todos os que nos distraiam ou dispersem) pelas ruas vivas e buscamos o “tempo das coisas” nas acções do exterior cruzado com a nossa deslocação física e espiritual.
Imaginando-me… se um dia me vir confinada a um espaço fechado e estanque, imagino-me definhando dolorosamente… “dar em louca”.
Calcorrear uma cidade, principalmente à noite - e por mais provinciana que seja a sua expressão - é um passeio pelo imprevisto, surpreendido de encontros e, sem qualquer dúvida, o lugar comunitário por excelência para o que merece ser visto de gente, obra humana ou beleza natural.
Quem se presta à humildade do passeio, dá-se à liberdade da divagação e reforça a confiança na sua relação com o lar privado, o espaço público, o emprego e o seu papel de cidadão e esteta nesse corpo global.
Passeamo-nos e as idéias caiem como relâmpagos que se cruzam e se atropelam para conquistar a nossa atenção e valor crítico!

domingo, abril 17, 2005

Comédia social

Caodagua[1].jpg
Quem opta por companhia canídea no seu lar, opta também pela perda de certo respeito e anonimato no seu bairro. Perdemos a grandeza do "Sr. Tal" para passarmos ao acessório "De". Sempre que faço com Comédia a volta das 'mijinhas' na rua dou por mim sujeito à marginalização acessória dos "De", porque eles, "Os cães", é que são os engraçadinhos e simpáticos. Adiante.
Ontem a tarde foi épica e em vez de servir o confessionário e a má-língua da vizinhança, vi-me no papel de palhaço da curiosidade da mesma.
Casaco vestido e trela à mão, abalo para a rua com Comédia para a rotina que começa logo na porta da rua e junto à cabine telefónica na esquina.
Não sei o que há ali de especial, mas Comédia faz sempre questão de estrear a bexiga aflita naquele poste esbranquiçado. Talvez seja pelo resguardo discreto dos genitais, não sei... a mim é que me 'lixa', que quando lá está gente a telefonar obrigo-me a fingir que não vejo e a seguir fazer-me de parvo com o coitado do parvo que acha que tem as calças mijadas.

É que ele não percebe (e na verdade não tem que perceber) que me é quase impossível suster a correria desenfreada desta 'senhora' que está «ai, ai», há não sei quantas horas, e assim que abro a porta zarpa doida para aquele canto.
Peço mil e uma desculpas pela abundância amarelada e espessa do orgulho de Comédia - que defende como as horas densas da sua clausura diária e néctar genuíno de identidade -, e macaqueio um responso e uma 'sapatada' nela. A seguir piro-me não vá o 'gaj
o' entender alguma indeminização.
A seguir uma garagem e o cumprimento barulhento do cão do outro lado de lá do portão verde (que já está de focinho enfiado no buraco da vala a pressentir-nos) e o mesma à dona na janela que me diz monotonamente «que não dormiu nada esta noite» e mostrar-se curiosa por saber se a mesma espertina teimosa tinha estado lá por casa.
«Boa tarde» para aqui, outra 'mija' para ali e nisto tudo fico a saber que afinal o sono da vizinha não tinha nada de mais. Quem tinha era o marido - taxista - que há falta de clientes deve ter passado a noite na 'pielada' e não a sossegou com o roncar desatinado.
«Muito boa tarde então» e despeço-me rápido e avançando pela rua, não vá ela lembrar-se de qualquer tópico mais para comunhão.
Ás vezes as vizinhas são tantas que mais parece uma novela da vida real.
Do arrufo trivial à querela a raiar a violência doméstica, tudo me acompanha irremediavelmente até voltar outra vez a casa.
Ora, nesse dia, mal tinha acabado o quarteirão, reparei que nos acompanhavam dois simpáticos cães que desconhecia e pareciam íntimos de Comédia.
- RRRRRRRRRRR….. RRRRR….
Durante alguns minutos afagaram-se uns aos outros - o que até era interessante dada a indiferença de Comédia a estranhos - e ficaram ali parados cheirando-se até mais não. Todos muito expontâneos e com notada afeição entre si.
- RRRRRRRRRRR….. RRRRR….
Os quatro pela rua abaixo. Eles empoleirados como cabritos em cima uns dos outros e ela neles. Um rosnava delicado, o outro respondia-lhe numa nota acima e Comédia surpreendia-me tão interessada que estava naquela competicão saudável de machos.
Mais passada, menos passada, por cada vez que um 'mijava' concentravam-se os três na fruição olfactativa e, se era Comédia, então ficávamos uns largos 15 minutos na exploração química e urinária.
Mais um «boa tarde como está?», uma troca de rosnadelas seguidas de outras tantas piruetas e outro «boa tarde, até logo».

No entanto, à medida que caminhava, o trio mostrava-se mais animoso, excitado e, na mesma medida, o interesse bairrista que parecia gerar um falatório em surdina.
- RRRRRRRRRRR….. RRRRR….
- Isso está animado hem...? -
disseram-me.
- RRRRRRRRRRR….. RRRRR….
- Sua malandreca, ham?????? Não se ponha 'a pau' não!

As cenas deixaram de se suceder monótonas e perturbava-me a sensação de espionagem bem nas minhas ventas. Comédia não me parecia assimmmmmmm tão diferente e eu não via em mim nada de estranho: nenhuma roupa do avesso, nada agarrado aos sapatos e até me tinha penteado.

Continuava o alvo das atenções e não descortinava a 'cena'.
- RRRRRRRRRRR….. RRRRR….
Agora é que foram elas. Distraído com o 'borracho' da vizinha, de repente tropeço na trela, Comédia em mim e com isto levo um esticão tal no braço que fui parar bem no meio da estrada.

Cão pisado, cão ganido e um deles derrubado. O derrubado ergue-se do chão e morde no ganido. Comédia dá uma salto brusco e aí é que achei que estava alguma coisa mal.
Aqueles três não estavam em sintonia mas em luta e já com os caninos de fora e em cena. Todos no passeio se riam de mim, preso e enrolado que estava naquela trafulhada toda e na estrada a empatar o trânsito sem perceber como sair dali.
- RRRRRRRRRR….. RRRRR….
- Aurrrrrrrrf….. Aurrrrrrrrf….

Não tinha por onde meter as pernas e laçar a trela. Ás tantas não parecíamos quatro, mas dez, enrolados uns nos outros e a estorvar os carros parados para circo do bairro inteiro.
Todos ao molho com troca de galhardetes viris e eu desgraçado no molho, e aos esticões a Comédia já danada para se livrar dos forasteiros.

Os estupores dos cães não me libertavam e ainda levei com vaias obscenas dos condutores em procissão. Um grande e patético espectáculo:
- RRRRRRRRRR……..RRRR….. Linfócittos!!!!!
- Bolas! Comédia! Bolas! Comédia! Bolas!
- dizia, ou melhor, gritava eu...
Não percebia como é que o passeio das 'mijas' se tinha transformado naquela manifestação desordeira e como uma meia-hora calma se registou em 45 minutos danados de cãozoada pisada, cãozoada ganida e cãozoada mordida.
A mim beliscaram-me a descrição e a deferência dos vizinhos - que muito estimo para minha privacidade - e a Comédia só lhe faltou cumprir algumas 'mijas'.
Como é que acabou a novela?

Ajudou-me a correr com os cães o tasqueiro - logo o 'tipo' com quem vou menos à bola! - e corremos esbaforidos para casa na companhia de uma poia agarrada à sola que não sei de onde é que apareceu.
Assim que alcançei o prédio atirei-a logo lá para dentro:
- Linfócittos.......... RRRRRRRRRRRR........
- Não me digas nada, 'caraças', fica aí!
- RRRRRRRRRR….. RRRRR….

Respirei, descansei antes de começar a limpar a trampa do sapato (mais a que deixei na soleira do prédio) porque se não me despachava ainda acabava a limpar as escadas todas.
- Que raio de turma senhora Comédia!!!!
- RRRRRRRRR…….RRRRRRRRRR……

Um grande e patético espectáculo!

sábado, abril 16, 2005

Sexo-expresso (XIII) ou Sexo também é nome de mulher

"Eu já sabia antes o que havia dentro de Natália. Algo conhecia dela. Sabia, por exemplo, que as suas pernas redondas, duras e quentes como pedras ao sol do meio-dia, estavam sós há algum tempo. Eu já conhecia isso. Tínhamos estado juntos muitas vezes; mas sempre nos separava a sombra de Tanilo.
O que queríamos era que morresse. É uma coisa que agora não podemos compreender; mas então era o que queríamos. Lembro-me muito bem. Lembro-me muito bem dessas noites.
Primeiro alumiávamo-nos com ocotes. Depois deixávamos que a cinza escurecesse a labareda e depois procurávamos, Natália e eu, a sombra de qualquer coisa para nos esconder da luz do céu.
Assim nos encostávamos à solidão do campo, longe dos olhos de Tanilo e desaparecidos na noite. E aquela solidão empurrava-nos um para o outro. A mim punha-me nos braços o corpo de Natália e a ela isso servia-lhe de consolo. Sentia que descansava; esquecia-se das coisas e depois adormecia com o corpo sumido num grande alívio.
Sempre acontecia que a terra sobre a qual dormíamos estava quente. E a carne de Natália, a esposa do meu irmão Tanilo, aquecia-se de seguida com o calor da terra. Depois aqueles dois calores juntos queimavam e faziam com que qualquer um acordasse do seu sono.
Então as minhas mãos iam atrás dela; iam e vinham por cima desse rescaldo que ela era; primeiro suavemente, mas depois apertavam-na como se lhe quisessem espremer o sangue. Assim uma e outra vez, noite após noite, até que a madrugada chegava e o vento frio apagava o lume dos nossos corpos."
Juan Rulfo - "A Planície em chamas" (1953)

H.R. Giger - "Biomechanoid" (1976)

A baronesa de Hollywood vingou os seus caprichos elitistas (segundo ouvi dizer), e o 'borracho' provou mais uma vez que se Madalena não pôs Jesus de língua de fora e crucificou a sua castidade numa digna erecção, então a Civilização não tem que agradecer ao Senhor a criação de Eva mas à realização das sedutoras formas e desenvoltura erótica de Sharon Stone.
Por definição, a fantasia erótica extasiante exclui o amor, a promessa, os deveres e até a própria vida social - campos esses reservados à intimidade do matrimónio ou da união - e representa a verdadeira expressão anárquica, anti-social e libertina do sexo.
Quem não se lembra dos ícones Marily Monroe, Sofia Loren, Brigite Bardot ou Gina Lollobrigida e das filas intermináveis à porta dos cinemas nos anos 60/70 para delírio do português tão recalcado?
Este ano promete-se a exibição de "Instinto Fatal 2" explorando duramente a obcessão erótico-feminina reencarnada na interpretação do 'borracho'.
Ouvir sussurrado por uma tela «eis-me aqui, simples, ingénua, frágil, excitável. Faz aquilo que quiseres, que não te peço nada, nem casamento, nem continuidade, nem promessas ou dinheiro» só não vai poder ouvir (e ver!!!!!) quem não quiser.

sexta-feira, abril 15, 2005

A "cátedra" irritante do conhecimento adquirido e firmado

(Cátedra: designação para a cadeira do bispo na catedral onde ele fala ao povo e da sua doutrina)

Invocar o trono da "cátedra" como condição sine qua non para a reflexão de uma determinada temática, na medida em que legitima a multiplicidade singular da sua conversação, é impertinência, senão preconceito disfarçado.
Sugerir que temas, em particular quando se trata de emaranhados novelos de subjectividades (chamemos-lhes Pi, em homenagem à famosa constante numérica), se possam desvalorizar pela ausência da "dita cuja", e por isso arriscarem-se a constituir ilações gratuitas, é leviano ou inteligência desonesta.
É diplomaticamente dar a entender que, para si e por ora, "está tudo dito"(!). E, para o outro, traduz-se numa iniciativa filosofante esgotada à nascença pela relativização do seu estatuto de expoência e infalibilidade.
Por que razão não se pode aliar a vastidão e complexidade de realidades aparentemente intangíveis (Pi) ao doutrinarismo salutar da "cátedra"? Reconhecer, ainda assim, a idoneidade e sofisticação profissional dos representantes de Pi? Porquê, se Ela conceptualmente exorta o fértil horizonte do conhecimento e deseja-se o lugar humilde para seu testemunho?
Assegurar a tradição (no que significa o pensamento memorizado na prática) de um saber não passa também pela comunicação crítica do seu valor? Além de escrito, falado e comunicado?

A anticrítica da adjectivação redutora
A variável da simplificação é amiga do Todo imediato mas não das Partes também importantes. Talvez seja produtiva na praticabilidade e no exercício, na necessidade de roubar tempo ao próprio tempo das coisas, mas é indubitavelmente inimiga do aprofundamento e da qualidade natural de complexo do Saber.
A urgência nos dias de hoje em assimiliar e rentabilizar a informação atribui a Pi a característica de "complicado" em si e um conhecimento que não oferece explicações satisfatórias para o que dele se observa.
E, se não tivermos consciente um modelo empírico que nos permite cruzar as suas várias dimensões e ainda assim acharmos importante considerar Pi, resta-nos um suspeito pedantismo.
São as realidades complexas (Pi) que não dominamos (domesticamos) na vida e que não instrumentalizamos em sabedoria corrente, que nos catapultam para a comunicação artificial dos conteúdos ou para a expressão pessoal pretensiosa. Ou seja, o pedantismo: a vaidade do que não conhecemos na complexidade mas precisamos e, como tal, exibimos simples.

A perplexidade inusitada a Pi
O erário idealista humano é, por excelência, ávido de informação e os homens que se sentam na "cátedra", quando são demasiado ambiciosos para a concretização do saber, muitas vezes reduzem-se a alegorias populares e místicas da intelectualidade filósofa.
Porque os valores modernos se sobrepõem à cultura civilizacional e buscam imperativamente a produtividade absoluta, entendeu-se o Homem deste século instintivamente avesso e indisponível à qualidade morosa da Complexidade (Pi).
Como transformar em valor de mercadoria um facto misterioso (Pi) que nos deixa atónitos e impotentes perante a sua ruptura com os nossos raciocínios automáticos?
Quando há o reconhecimento de uma realidade em que nos movemos que comporta elementos desconhecidos (Pi) que não esperávamos e existe a dificuldade de os compreendermos no contexto que temos desse mesmo momento, dá-se a perplexidade fatal e, das duas, uma: ou aceitamos o desafio do estudo e da exploração, ou desvalorizamos a sua importância (não porque não a reconhecemos mas porque não nos parece lucrosa no imediato).
Abordar a complexidade de um Saber é analisar o conjunto das relações e processos de desenvolvimento inerentes, dar visibilidade às dificuldades da sua leitura e interpretação, e, mais importante que tudo, tentar transformar a sua realidade "difícil" na simplicidade dos conhecimentos já adquiridos e assimilados.

A diferença entre Pi e a "cátedra" irritante
Lidar de maneira satisfatória com o quotidiano exequível é mais do que o automatismo das fórmulas e regras decoradas para nos organizarmos no tempo prático.
O sucesso do amanhã está em saber aplicar e transformar a razão sustentada do que se aprendeu ontem, no valor cultural dos actos, na diferença que revelam em cada um de nós e entre si, e, fundamentalmente, ter a noção de que a práxis é o primeiro passo mas não o único. É nestes entretantos que a complexidade de Pi se vinga e a "cátedra" se engasga.
Analisar e comunicar bem deviam, a priori, exigir o conhecimento dos seus instrumentos de comunicação - neste caso a palavra.
Porque é na experiência vivificada das realidades que se invocam que o exercício do saber ultrapassa o pedantismo e revela a real capacidade de compreender os seus contextos e dominar a complexidade (Pi) na sua amplitude.
O pedantismo - um saber inócuo e presente em todos nós - está directamente associado à valorização pessoal e social da palavra, em detrimento do seu próprio significado e do objecto que ela representa. E, infelizmente, o conhecimento do facto quantificável e experimentável tem servido mais para as disputas e vaidades do homem, do que propriamente para o seu virtuosismo.
Preocupamo-nos mais em cuidar das opiniões dos outros e do saber alheio, do que em torná-lo nosso: «Se [o saber] não modifica nem melhora o estado de perfeição, fora certamente preferível não adquirí-lo. Melhor seria não ter aprendido nada» (Michel Montaigne, 1580)

A) O texto presente serve uma correspondência pessoal com outro bloguista a propósito de "Estes fartos amores..." e, como há informação omissa, o mais certo é não perceberem patavina da sua finalidade... mas, como calculam, isso não tem importância nenhuma...
B) No último post distanciei em "séculos" os inícios da Psicologia como disciplina de conhecimento, o que deveria ser em "anos". Uma calinada que logo os meus amigos me lembraram. Mea culpa!

quinta-feira, abril 14, 2005

Estes fartos amores... (II)

Ao fim de uns quantos "Amores Difíceis", tornou-se evidente que o programa até se poderia intitular de "Fartos Amores", dado que as dificuldades que em geral se esboçam na condução desse sentimento não estão só relacionadas com um universo único e unidisciplinar. Na sua génese ele reinvindica uma teia emocional que invoca a diversidade de afectos simultâneos.
Reclama muito mais a socialidade implicada do que a singularidade da sua essência (espiritual, sensorial e pragmática) que envolve. Ou seja, amam-se "muitos" e de "muitas" maneiras no mesmo espaço íntimo e com amores que não se substituiem uns aos outros nem competem entre si.
Com um património afectivo potencialmente "multiculturalista", eu (pelos 34 anos) revejo-me mais nos médicos do que na apresentadora da minha idade.
Ao contrário do instituído amor a que se impõe o estatuto histórico de incondicional e temeroso, considero que ele deve, acima de tudo, obrigar-se ao afecto para estímulo e dedicação do parceiro no tempo e na medida que ambos desejarem, e não pela necessidade da sua sobrevivência e justa-causa.
Qualquer um deve ao "outro", e a si próprio, a liberdade total na prática amorosa e nos considerandos ao objecto do amor que tantas vezes se assumem anómalos aos estereotipos e prioridades dos tempos.
No meu mundo sentimental o que lhe percepciono é invariavelmente singularizado por uma intensa anarquia do género e concentrado em expressões de filialidade vária nas emoções do imediato que lhe estão associadas.
Se, na construção da amizade, coabitam significativamente a sedução e a atracção, isso significa também que potenciam as relações sociais alguma da imaginação e criatividade erótica que idealizamos sobre o nosso amado.
Quer dizer então que a fronteira entre o amor filial e o amor relacional "exclusivo" é ténua e sensível, ou melhor, não é delimitável e oscila consoante a intensidade que se gera entre os envolvidos. Quantas vezes a afinidade intelectual e espiritual não nos emociona e impele para a procura no outro de um corpo idealizado que já não se contenta com identificações e afinidades gerais mas quer-se alimentado pela nova realidade romântica que se suscitou?
Esta metamorfose dos "papéis afectivos" é, religiosamente, o mais próximo e fiel da diversificação e da individualidade que os meus afectos assumem e até encontram feed-back comunicacional (isento de juízos de valor como nos "Amores Difíceis"). E, se por acções externas me ameaçam contrariedades internas, este programa democrático logo se apronta a apaziguar-me a contrariada "cultura e dialéctica amorosa" e estimula narcisismos para o meu coração indeciso ultrapassar a má-língua das lógicas normativas.
Porque, no fundo, é um programa que se faz a nós, enquanto amantes incondicionais, como na vida é suposto nos fazermos aos outros por amor, honrando nele a reciprocidade, a partilha generosa e, acima de tudo, a confiança do sentimento que serve o aprofundamento espiritual e amoroso entre dois entes.
Acolher o outro graciosamente, enquanto entidade amorosa, despojando-nos do "nós" anterior para abraçarmos a mutualidade que testemunha o novo "eu", é que significa a verdadeira conciliação dos sentidos afectos e poéticos dos amantes. Dos veículos da verdadeira infinitude e plenitude da natureza humana: a generosidade do amor.
A perfeição em ''ser" o que somos para os outros em sentimento não se trata de método mas da essência em que evidenciamos o "ser" que somos, fomos e pretendemos ser em novos sentimentos.
Fazemo-nos nele e nele nos esgotamos como essência de vida.
Uma "Sessão da Meia-noite" excelente para, ás tantas, nos lembrarmo-nos da passagem amorosa do "outro", logo ali no sofá...

[Apanhámos um combóio.

Impelia-nos o desejo da liberdade pela liberdade de cada um.
Éramos dois em algumas estações,
éramos só um noutras.

No regresso ao que não queríamos, falaste de paixão e amor,
mas não de "nós" neste mundo frágil.
Talvez noutro combóio,
noutro tempo suspenso,

nos possamos amar sem saber quando a viagem acaba,
quando "nós" nos extinguimos.
Até que o adeus substitua o olhar,
a palavra apaixonada nele sufocado,
noutro combóio...]

quarta-feira, abril 13, 2005

Estes fartos amores... (I)

Ao fim de uns quantos "Amores Difíceis" tornou-se-me inevitável e (im)pertinente questionar a verdadeira essência desse colectivo espiritual, sensorial e pragmático - o Amor - que o programa se prestou a dissecar com conhecimento terapeuta e científico para os que estão deste lado do ecrã e que são, nem mais nem menos, quem verdadeiramente o personifica e testa nas suas múltiplas dimensões para reflexão e análise dos especialistas.
Inevitável porque a sua expressão individual não é nem pode ser uma redacção menor da complexidade e infinitude do homem plural e da instintiva interacção de "um" com o "outro". Trata-se de um "campo" humano imperfeito que não goza de transparência e quantificação possível, e que se faz (im)pertinente para qualquer sensibilidade atenta e curiosa da sua compreensão que, ao fim de tantos séculos da Psiquiatria, só se sabe que se trata de um sentimento que ganha corpo e vincula-se "mortalmente" na cumplicidade fértil e na dependência profícua - como mais nada no tempo útil da lucidez humana.
Talvez num futuro inimaginável de milhões de anos a ciência descodifique a totalidade do genoma do primata moderno, o código génetico da sua galáxia biocelular, mas nunca (e talvez ainda bem), nunca poderá racionalizar essa envolvência visceral e espiritual entre homens e mulheres (cosmos unos que interagem coerente e incoerentemente) com regras da moral subjectiva e códigos sensitivos da conduta objectiva.
Neste programa, agora reposto na RTP e acompanhado pela minha insónia nocturna, continua a entusiasmar-me a particularidade dos três intervenientes: duas (ou quase três) gerações e dois sexos distintos a cozinharem em fogo lento os suspiros privados dos amantes que não remetem a sua vida afectiva ao conhecimento leigo e á experiência amadora das suas uniões.

A apresentadora perfila o jovem contemporâneo sem preconceitos e surpreendido constantemente com as motivações subterrâneas das tumultuosas relações; o médico cinquentão tem um discurso de ternura e aceitação para as perversões contranaturas que encanta verdadeiramente e que realiza honesto, sem bluff ou charme para seu protagonismo televisivo (quem o leu pode testemunhar a continuidade teórica dos seus livros, hoje reincidente no ecrã); e uma médica escrupulosa que não lhe fica atrás mas destaca-se subtilmente porque parece dominar a comunicação e a pedagogia frágil do íntimo, privilégio da ala masculina que outrora dominava tradicionalmente estas profissões.
Um programa excelente porque o seu formato unisexo, ás tantas, desinibe-nos as "vergonhas" (de Pêro Vaz de Caminha) e só nos dá vontade de praticar as contrariedades logo ali no sofá...

terça-feira, abril 12, 2005

Um regresso deveras penoso...

1 - Quando começei esta prosa não sabia se a havia de encabeçar por "Ás paredes me confesso" ou "Em minha defesa me confesso", porque, no mais fundo dos meus fundos, não me era ainda claro se estava perante a inevitável e distinta oportunidade de acabar esta "farsa" (e em que não me vexaria ou os outros que de alguma forma foram cúmplices) ou perante a única possível para esclarecer de uma vez por todas o imaginário que eu pretendera para o bocadosdegente.blogspot.com.
A diferença era que enquanto eu o fizesses "às paredes" estava claramente a menosprezar a determinação do próprio acto confessionário e, se o fizesse centrado na minha exclusiva pessoa, mais que justificar-me, estava á priori a reconhecer o pecado e por consequência rogar pela sua absolvição.
De qualquer maneira, esta aparente contrição não chegaria para decidir o meu crucial dilema:

- deveria revelar a minha "verdadeira" individualidade (no que me é genuinamente próprio) aos que desse lado não me conhecem ou, simplesmente, assumi-la "ao natural" e em jeito escrito, significando isto Nada em concreto porque o Tudo, como se viu até agora, pressupõe-se afinal que não faz parte de mim, logo mortalmente esvaziado.
- confessar a minha humilde «condição de sapateiro» (nas palavras de minha mãe) ou com unhas e dentes defender o meu ideário espiritualista e de qualquer comum mortal que, como eu, aspira a uma existência mais literata.


2 - Nestas duas últimas semanas o que deviam ter sido só férias forçadas por motivos de ordem menor - como obras de recuperação e manutenção lá de casa - revelaram-se 15 dias perplexos por labores personalistas bem mais escalavrados e (des)estruturantes.
Agora, o exílio bloguista causado pelo "apagão" intelectual e pela crítica silenciada já não não me parece tão sofrível. Reconheço, aliás, que foi disciplinarmente revelador porque, desta vez, pude concentrar-me única e exclusivamente na organização da leitura e consequente escrita alucinante que vem sempre por arrasto.
A insegurança rápido se fez segura e a impossibilidade de aceder á tecnologia para edição não impediu nem o fervilhar das idéias que a fertilidade dos dias encerra, nem o deleite maior e que tão poucas vezes se ocasiona: a escrita madrugadora das noites extendidas pela leitura.
Entre os tempos lidos e os tempos escritos assegurava que a "casa não fosse abaixo" e tratava das ressacas da amistad y sus relaciones que a profissão egoísta secundariza. Neste campo, e para minha surpresa, "saíu-me o tiro pela culatra" ao descobrir que aos 34 anos dormir nas casas dos amigos já não é razão para reavivar festivamente as intimidades e muito menos para as cumplicidades "de alex" dos solteiros e sózinhos.
É que nos entretantos dos meus 34 a última coisa que apetece aos outros mais velhos, que já andam à porta dos quarentas e muitos, é acamparem nostalgias às 4.00h da manhã no chão da sala e comungarem os entretantos da idade que se reduzem á fatal e desoladorada solidão das suas vidas.
«Não é um drama, todos lá chegamos um dia...» convenci-me para me custar menos a aposentadoria deles e a minha hospedagem provisória.
Salvaram-me da condição humana ambígua algumas noites pardas com um grupo mais restricto e diletante de comunhões filósofas á mesa.
Assim imaginava eu que não seriam tão maus estes dias: pela manhã entregava o corpo da leitura à esplanada primaveril; à tarde escrevinhava as idéias efervescentes no colo da "Paixão Segundo São Mateus" bachiana e á noite degustava á mesa as excelentes e criativas amizades que tanto saudava.

3 - Parva fui eu que achei por bem terminar "á grande e á francesa" e dedicar parte deste tempo á paternidade criativa (e sempre exemplar), esquecendo-me porém que junto com ela vem sempre a maternidade incondicional da crítica tendencialmente prática e simplista.
Esses pares de dias que lhes ofereci com honrarias de primeira, já que estava na sua dependência total pela ausência do automóvel que não havia para me levar longe dos subúrbios, tão depressa fizeram juz aos propósitos filiais como frustraram toda e qualquer iniciativa nostálgica do regresso ás origens.
Mal tinha passado a primeira noite a discutir entusiasmada o abstracionismo moderno com meu pai e logo a manhã insistia desesperada no retorno a casa com desculpas mal amanhadas de uns quaisquer imperativos profissionais.
É que entre cafés e cafézinhos, filmes e filminhos, inocentemente a minha mãe conseguiu envergonhar-me (esperem... ainda não lhe encontrei o termo), digamos "suicidar-me" emocionalmente o embrulho empírico. E por mais que a minha trivialidade a tente convencer de que o conhecimento reunido pela experiência da prática (ou pela prática da experiência???) pode concretizar algum conteúdo passível de se organizar e raciocionar em idéia ou fundamento, não há nada a fazer.
Para ela, pertenço inexoravelmente ao lugar-comum dos "indiferenciados" e, com requintes de malvadez e involuntária perversão, ainda se deu ao trabalho de disfarçar a banalidade que entendia para a minha condição pessoal e lembrar que eu podia e devia continuar a usar a importante biblioteca deles, onde, por exemplo, aí sim, encontraria a poesia na sua verdadeira dimensão e «feita pelos que a sabem fazer e dar a entender».
O meu filantropo, a minha referência universal humanista - o meu pai - bem a admoestava e tentava interessar para o registo poético do meu hobby bloguista que não ficava a perder nunca porque, no mínimo e mesmo antes de «cair em mim», nada seria infortuito dado que me obrigava a ler e explorar melhor a literatura do género:
- Deixa lá a miúda Antonieta. Não tem nada a perder...
- Mas achas que ela percebe alguma coisa do que está para ali a escrever? Não vês que são só palavras caras... -
e olhava para mim como se eu tivesse enganado alguém.
- A poesia é assim mesmo... Põe a genial Augustina-Bessa Luís a poetizar e vais ver... Antonieta, que raio! Até parece que tu não conheces o discurso poético!
- Mas achas natural que ela fale e escreva desta maneira? Achas natural nela?
- Se for a sua pretensão, porque não?
Em meia hora e por causa de um mail de resposta a propósito de uma nova tradução de um amigo sobre um belíssimo poema de W. B. Yeats apercebi-me que para Antonieta o bocadosdegente.blogspot.com é um verdadeiro drama...
Ao fim de seis míseros meses de blog, este "senhor digital" trata-se de uma séria tragédia shakesperiana. Uma "droga doutrinária" de não sei bem o quê que, em dias como hoje, á minha mãe incomodam e a mim satisfazem o isolamento e a solidão que andam casadas com a independência e autonomia modernas. Uma "fixação" que, infelizmente, se estima solteira e sem os vínculos sociais "tradicionais" que dão uniões, filhos, netos e toda uma estrutura onde os progenitores possam ainda participar da vida dos que pariram.
Para mim... um regresso deveras penoso porque se havia coisa que tinha a certeza era que enquanto o bocadosdegente.blogspot.com ficasse alheado de meus pais, o tempo só me poderia ajudar: dar-me-ia tempo para com o tempo da minha incompetência se desvalorizar ou ganhar merecidamente valor, mesmo que menor, e, sobretudo, aliviar-me desse cunho e herança de ambos que, quando cru e estéril, é o peso da vida apoética.
É para mim a fuga possível à insignificância da minha existência e à vulgaridade da minha pessoa, mas não é para minha mãe o que Ruy Belo - que ela tanto conhece e aprecia - escreveu e tão simplesmente serve a escrita que se basta a si mesmo: «O poema é um objecto, uma coisa do mundo exterior. Uma vez terminado passa a ter existência própria (...). É um corpo vivo, e são exigências de autonomia, que asseguram e delimitam a sua fundamental unidade».