Sobre as ideias perdidas do Ballet Gulbenkian
Na altura, não sabia se me havia de sentir aliviada (mesmo que num breve e insignificante suspiro), se me ancorasse perplexa naquela frase ambígua «de que os mecanismos sociais que a impulsionam deixaram que tudo adormecesse e, a existir um consenso, ele faz-se em torno de coisa nenhuma».
Se ALIVIADA, porque essa coisa da 'cultura' afinal gozava de saúde, mesmo que não lhe sentissemos agora o pulsar, e não era grave porque no tempo certo ela tomaria o seu lugar concreto.
Se SERENA, porque a sua desenvoltura, agora em pousio «nos mecanismos sociais», aparentava o vazio da orfandade, mas não deixava de ser também a sua expressão (mesmo que adormecida e consensual).
Ou PERPLEXA porque tudo participava directamente da actual socialidade suspensa e imersa na crise económica e identitária do momento.
Reconheça-se, quando a marinada dos tempos difícies nos obriga a pragmatismos até nos ócios, huummmmmmmmmm...
...Nenhum de nós hesita em relegar para 32ªs núpcias as espiritualidades ou o espaço romântico das coisas da 'cultura' (mesmo sabendo que se corre o risco de, passada a modorra, não ter a garantia de recuperar certos...).
Sobre isto e com mérito, escrevinhou Prado Coelho em Fevereiro. Hoje, em Agosto, pergunto-me se Prado Coelho não predestinava (mesmo em consciência nublosa), por exemplo, o encerramento da Companhia de Bailado da Gulbenkian.
O Ballet Gulbenkian desde 1965 que nos proporciona a oportunidade de conhecer a dança moderna na sua expressão mais erudita/inovadora.
Uma escola de ideias de vanguarda que representou, para a época, a oportunidade para as mais originais expressões do modernismo na arquitectura e no design mundial.
Mesmo que alguns projectos particulares de dança já tivessem corpo, é o Ballet Gulbenkian (BG) - disciplinar da "dança clássica" ou ballet - que, efectivamente, mostra em Portugal haver mais para lá da dança de expressão folclórica ou popular, e estar ao alcance de quem o desejar fruir.
Foi há 40 anos pela mão de Calouste Sarkis Gulbenkian que a cultura erudita própria dos grupos sociais dominantes em Lisboa, teve a oportunidade de deixar para trás privilégios de classe e entregar-se aos interesses e exigências de grupos culturais que fossem surgindo naturalmente.
Começou uma nova escola de ideias para a dança portuguesa e implementou a democratização na fruição da cultura e das artes.
Ainda hoje se constata que os espectadores dos concertos, exposições, museus, etc, são sobretudo estudantes, jovens da sociedade cultural e rostos indiferenciados de idades e ocupações sociais. Este é o verdadeiro projecto da Fundação: ser de todos os que a quiserem e para tudo o que culturalmente importar!
Parece-me difícil escalonar a importância do BG e pô-lo acima de todos os outros projectos e metas da Fundação que cobrem vários segmentos sócio-culturais também importantes (ciência, alfabetização, rede de bibliotecas, ensino da música ou as inúmeras bolsas nacionais e internacionais para quase todos os conteúdos académicos).
Reconheça-se, o BG constitui um universo fundamental de estágios e emprego para os bailarinos portugueses, mas a sua «renovação de programas» será, por isso, menos importante?
A entidade é clara e honesta quando alega «a extinção da companhia como resultado do exercício regular de avaliação da sua actividade», ou seja, o entendimento da necessidade - ou não - da sua existência como está estruturada.
Acrescenta mesmo: «O panorama artístico de Portugal evoluiu muito e, actualmente, a companhia já não é essencial aos artistas para lhes assegurar currículos ou reportórios».
A Fundação achou inadequada a continuidade do BG enquanto tal e perante o actual contexto social e artístico português (mesmo com a consciência do seu valor nacional) decidiu dar prioridade «à qualidade dos bailarinos, à iniciação profissional, à experiência de coreografia, à produção da qualidade e ao confronto de ideias e sua internacionalização».
Partindo do pressuposto da verdade absoluta destas ideias todas, o que leva a sociedade civil (porque dos profissionais da companhia é de esperar a resistência), o que a leva a chocar-se e organizar-se para a salvação do BG?
O que existe na essência deste súbito medo da extinção do BG e não se verifica na pequenina rede portuguesa de cinemas que exasperam por sessões cheias, nas bibliotecas que só respiram o bafio da sua própria escrita ou os cafés/esplanadas das cidades (quase inexistentes) que permitem mais que uma relação circunstancial de passagem nelas e oferecem um espaço comunicador com a sua identidade?
E as livrarias? E os teatros? E os parques/jardins? E os museus nacionais?
O que é que o BG têm de tão importante que o resto não tem?
E a Capital? E o Comércio do Porto?
Pergunto-me se na origem desta 'aflição' não estarão as características artísticas do Ballet Gulbenkian e que o vinculam (por génese) às modalidades de culto das classes mais altas (como as elites da ópera).
Há uns meses, Eduardo Prado Coelho escreveu que essa coisa agradavelmente sonora da 'cultura' e o «trabalho das ideias» (no dizer exímio do próprio) está inevitavelmente envolvida na cultura de massas actual.
Na altura quando o li, não sabia o que havia de sentir perante a incontornável DESFAÇATEZ ao meu BEL-PRAZER intrínseco e a desconfiança de futuros prejuízos para essa coisa imensa e facetada da 'cultura' - agora sujeita aos efeitos preversos dos gostos massificados pela estética economicista.
Aquela perigosa consideração do momento cultural do país, mais que considerar candidatos ou projectos, fazia uma análise assustadora do que a sociedade da redução de custos, do nivelamento por baixo e da produção/consumo em massa deixa ao desbarato para amanhã.
Os homens económicos e funcionais acordarão amanhã indivíduos amargurados porque chegaram à conclusão de que a sua vida foi esvaziada de significado e trivializada nas suas acções mais nobres.
O vazio de ideias e sentido ameaça o homem moderno. Corremos o risco de voltar ao homem 'brutalizado' pela cultura idiota: a (in)cultura geral e banalizada.
Se relativamente a essa coisa da 'cultura', o próprio Prado Coelho reconheceu que «neste momento não merece grande transformação» o que esperar do Ballet Gulbenkian?
(*) Famosa bailarina portuguesa que iniciou a carreira no Grupo de Bailados Portugueses Verde Gaio, único agrupamento musical de dança da época (1947).
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