sexta-feira, agosto 26, 2005

Sexo-expresso (XXIIII) ou A evocação do sexo

"Dia"(*)
A voz de Kathleen tornou-se mais superficial, aproximou-se da provocação.
- E você deseja-me?
- Sim – confessei.
De novo, tive vontade de desatar a rir: um santo, eu! Que patranha magnífica! Eu, um santo! Será que um santo sente um semelhante desejo pelo corpo de uma mulher? Será que ele sente uma semelhante necessidade de a tomar nos seus braços, de a cobrir de beijos, de lhe morder a carne, de se apoderar do seu fôlego, da sua vida, dos seus seios?
Não, um santo não aceitaria fazer amor com uma mulher debaixo dos olhos de uma avó morta cujo lenço preto parece envolver as noites e os dias do universo.
Sentei-me. A cólera apoderou-se da minha voz.
- Eu não sou um santo! – gritei.
- Não? – perguntou Kathleen, que não conseguiu sorrir.
- Não! – repeti eu, irritado.
Abri os olhos e vi que ela sofria atrozmente. Ela mordia os lábios, uma careta infeliz sobre o rosto.
- Vou provar-lhe que não sou um santo – rosnei eu, maldosamente.
Sem dizer uma palavra, comecei a despi-la. Ela não opôs resistência. Uma vez nua, voltou à sua posição anterior. Com a cabeça apoiada nos joelhos, observava-me, angustiada, enquanto eu me despia. Duas rugas tinham-se cavado ao redor da sua boca.
No seu olhar, eu via medo. Eu estava contente: ela tinha medo de mim e isso estava bem. O medo, eis o sentimento que devemos inspirar. Todos aqueles que como eu, saíram do inferno depois de lá terem deixado a sua alma, só cá estão unicamente para meter medo aos outros, ao servirem-lhes de espelho.
- Eu vou possuí-la – anunciei eu num tom duro, quase hostil – Mas eu não a amo.
Eu pensava: é preciso que ela saiba. Eu não tenho nada de santo. Eu vou fazer amor com ela, sem que o acto me interesse. Um santo, esse, empenha o seu ser em cada gesto.
Ela desfez o penteado e os seus cabelos agora caíam-lhe sobre o peito. O seu peito subia e descia a um ritmo irregular.
- E seu eu me apaixonasse por si? – perguntou-me ela num tom de intencional ingenuidade.
- Pouco provável! Você vai mas é odiar-me.
O seu rosto ficou um pouco mais triste, um pouco mais pungente:
- Receio que não tenha razão.
Algures, por cima da cidade, a alvorada preparava-se para se erguer sobre um mundo nevoento.
- Olhe para mim – disse eu.
- Estou a olhar.
- O que vê?
- Um santo – respondeu ela.
Pus-me a rir de novo: estávamos os dois nus e um de nós era santo? Era grotesco! Eu possuía-a brutalmente, tentando fazer-lhe mal. Ela mordeu os lábios, não gritou. Ficámos juntos até uma hora avançada da tarde.
Sem que uma palavra fosse dita.
Sem que um beijo fosse trocado.
(*) Elie Wiesel

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Atalanta Filmes
Paulo Branco não é parvo nenhum e sabe que a
sua distribuidora só poderá sobreviver do cinema de culto europeu enquanto exercitar a polivalência intelectual.
Reconhecida que está a saúde das suas salas (a crescer, apesar da ameaça de falência dos Cinemas Millenium Alvaláxia), o realizador não parece apenas apreciar a erudição da 7ª Arte, mas estoicamente congrega em si (até que outros venham por esta corda no pescoço empresarial!), chama a si a representação distinta dessa importante "sociologia de película" na nossa sociedade cultural.
Talvez porque saiba que é accionista totalitário neste nicho de mercado, talvez... mas não interessa.
A sua determinação é evidente e vinga o sentimento comum e a sensação de que 'esse' cinema sem estereótipos standards só parece viabilizar-se nestes moldes.
Tudo o mais que surja é quase sempre na forma nostálgica (como os "pacotes" e efemérides da Cinemateca de João Bérnard da Costa) ou próprio de ambientes do diletantismo intelectual protagonizado por intelectuais do establishment (como é o caso de Clara Ferreira Alves e a Fundação Fernando Pessoa ou de Prado Coelho e o Instituto Camões).
Não tenho nada contra e mesmo considerando um certo aburguesamento da Cultura, tenho ciente de que é também a sua gestão por estas elites que nos dá a garantia da concretização e desenvolvimento do melhor que por cá temos.
Nada tenho contra mas chateia-me saber que sou da geração do pós-feminismo português do século XX e ainda hoje (no século XXI) me é vedada a filiação no Grémio Literário do Chiado (como se fosse uma ‘pelintra’ qualquer e só lá quisesse ir para armar uma escaramuça intelectual!). Mas não tenho nada contra...

Deixando a vasta cultura e voltando ao cinema europeu, é sabido que os vários ciclos de cinema experimental, documental e de produção independente que ocorrem ciclicamente no Verão e em Lisboa, não chegam para satisfazer o gosto da tela gigantesca que reivindica prazer todos os 365 dias por ano.
Ainda assim, não há como nos preocuparmos (identifique-se quem quiser) graças à Atalanta Filmes!
Mesmo cegos de referências (a)críticas ou informações, basta apearmo-nos numa das suas casas e esperar que, por entre as suas portas negras e mudas à nossa frente, surja a luz reveladora que nos chama e que quase sempre cumpre a emoção desejada!
Posso dizer que mui raras vezes (para quem sabe, rogo que salte por cima deste preciosismo itálico que gosto por me lembrar Dom Quixote e que me acusa de deveras «bacoco»), mui raríssimas vezes essa mesma luz me faz a desfeita.
E, quando tal acontece, trata-se precisamente da tal política polivalente e é consequência de tentar baralhar feijões pretos por entre feijões branco plácido, ou seja, as cedências no perfil do produto e o sintomático «afã do mercado, o mercado que é a vida de hoje (...) um mercado, um facto biológico», como afirmou o realizador espanhol José Luís Cuerda.
A competição empresarial nem sempre permite o absolutismo das opções estéticas.
A sobrevivência económica dos profissionais do Cinema obriga que «(...) os jovens guionistas estejam mais preocupados em vender um guião, que em contar uma história» como diz José Cuerda, obriga a que os actores desprezem a sua qualidade em troca de papéis aberrantes mas bem pagos e não dá alternativa aos empresários que não resistem a explorar esse magma sensacionalista e profícuo e que permite (Paulo Branco por exemplo) continuar a oferecer grande parte do genuíno cinema europeu e poder pagar-se a si próprio.

9 Songs(*)

A última destas raras ocorrências foi o "9 Songs".
E qual era o engodo? O SEXO!!!!! Sendo que neste caso o engodo constituia o sumo em simultâneo!
Enquanto o "Dia" de Elie Wiesel entrincheira parágrafos de sexo explícito porque é a única comunicação possível entre dois mortais comuns que deambulam no deserto da sua própria existência (o personagem masculino é a identidade desafecta que sobrou de um campo de concentração nazi e a personagem feminina uma individualidade anulada e produto do amor que não teve eco e só lhe restou crescer em auto-negação), já o realizador Michael Winterbottom opta pelo sexo como instrumento de diálogo básico para uma proposta que não passa desse mesmo lugar comum a todos nós (o corpo, por mais estranho e insólito que se apresente na acção, é sempre compreendido dadas as 'latitudes' da líbido de cada um).
A literatura de Elie Wiesel não invoca o sexo por ausência de uma ideia, até pelo contrário, sem recorrer a sofisticações retrata a intimidade violenta de um passado de terror subjugado e a tirania consequente no território da sensibilidade feminina (supostamente apaziguadora para esses homens a quem só resta a libertação no erotismo e amor).
Em relação ao filme, nem sequer tenho como me distanciar pragmaticamente para lhe espremer mais polpa porque - como diria muito bem a minha mãe - neste caso trata-se de "tusa" do princípio ao fim, "tusa" do muppi na rua ao escaparate do cinema, "tusa" da recensão jornalística ao próprio visionamento!
Ide ver e digam-me que não é assim!
Digam-me que não estiveram quase 1:30h a contorcerem discretos os 'membros' e a espreitar os do lado anormalmente frenéticos!
Digam-me senhoras, se aqueles 9 dias seguidos de 'marmelada' londrina não encalorou de súbito e inusitadamente os vossos espaços entre-membros!
"9 Songs" não é um filme, mas um candidato a ante-projecto de estudo para um filme (como o velho e valiosíssimo Relatório Wright que antecedeu tudo o que conhecemos de literatura erótico-americana do período moderno, inclusivé o "Último Tango em Paris").
Ide ver e digam-me se quando saíram da sala não repararam nos homens com o passo teso como miúdos acabados de roubar chocolates no supermercado e tentando disfarçar o que ia dentro da sua roupa! Ou as mulheres de tronco firme e um passo amiúde como se alguma coisa lhes fosse escorregar por entre as pernas!
Ide ver e depois digam-me se experimentaram mais além de sexo, de sugestões sexuais ou de invocações à líbido.
Se eu vos tivesse surpreendido à saída e perguntasse do que é que se lembravam mais intensamente, vocês talvez dissessem o mesmo que eu e que, curiosamente, se estreia como a primeira fala do filme:
- I just remenber Lisa... nothing that she told me about herself or her family... I just remenber Lisa...
A Atalanta Filmes escarrapachou em tudo quanto é fachada de recuperação coerciva em Lisboa uns provocadores cartazes gigantes que ilustram uma jovem em auto-estimulação e sugerem a inspiração sexual no puro rock londrino!
Eu já vi "9 Songs" de Michael Winterbottom... é um filme caseiro produzido com meios profissionais que me lembraram as "brincadeiras" de Yoko e Lennon... e também só me lembro de Lisa e a sua evocação tramada do sexo doido...
(*)Atalanta Filmes 2005 - Revolution Filmes