quinta-feira, agosto 18, 2005

As várias faces do multiculturalismo

O multiculturalismo devia 'embandeirar' questões de antropologia social e cultural, em vez de servir contingências de domínio!
Talvez «O Dilema do multiculturalismo» de Ralf Dahrendorf (1) resida no seu pressuposto da natureza conflituosa («os ataques terroristas de Londres, em Julho, demonstraram a força e a fraqueza deste conceito») ou nos seus sinuosos ângulos humanos das "sociedades multiculturais" («para os terroristas, os conflitos étnicos e culturais, são consequência dos efeitos perturbadores da modernização»), mas não no conceito que encerra.
Sem as condicionantes da aculturação política (a mudança cultural imposta pela vigência) ou da transculturação filosófica (a troca/partilha por comum acordo), o multiculturalismo é basicamente uma espécie de concordância universal cuja (pré)concepção democrática é actualizada pela humanidade das próprias épocas e permite aos povos a oportunidade para o entendimento civilizacional.
As origens arcaicas desta abstração humana imagino que remontem aos primeiros contactos sociais do homem isolado pelos continentes e - arrisco a dizer - terá provavelmente começado a sofrer da sua pureza sociológica, logo pelas descobertas do poder do mesmo homem já socialmente organizado.
Isto só é importante para o estudo da organização social, política, de parentesco e das instituições sociais (antropologia social) e dos sistemas simbólicos, da religião e do comportamento (antropologia cultural), saberes que passam ao lado da globalização para revelarem a nacionalidade desconhecida no seu próprio vivir histórico.
Isto só é importante para dignificar o que serve o multiculturalismo e que a crítica (que supostamente não é comprometida) não devia permitir que se escamoteasse do pé para a mão, em virtude de uma modernidade oportunista que - à falta de instrumentos de comunicação consensuais - readapta mecanismos da vida cultural para fundamentar e legitimar a cegueira das suas bandeiras geoestratégicas e proteccionistas.
Posto isto, o multiculturalismo não aborda significantes sociais do séc. XX, dada a sua génese comunitária ser secular.

É simplesmente um termo pós-moderno usado para o cruzamento intemporal das culturas (porque o tempo é a sua unidade real de consolidação) e as influências transgeográficas dos seus representantes nacionais (os conflitos armados deixaram a convencionalidade da acção em casa, como se verificou nos atentados de Madrid e Londres).
O multiculturalismo também tem uma face hipócrita, na medida em que não é só o ambiente cultural que exerce pressões sociológicas para o desenvolvimento das cidades globais (os portos de influência política, económica, cultural, etc, como Londres, Nova Iorque ou Hong Kong que estão verdadeiramente em causa) mas também - e sobretudo - as contingências de domínio e os macropoderes pós-Guerra Fria.
E isto trata-se de transformar as consciências sociais e políticas!

O multiculturalismo já teve outros nomes...
Da mesma forma que o sistema republicano precedeu a gestão impossível da monarquia feudal (e da conquistada sociedade instruída e produtiva q.b.) para a descoberta, mais tarde, da política parlamentar e do capitalismo (como mais-valia social de desenvolvimento técnico e humano), hoje arranjou-se esta palavra redonda e demasiado vaga - o multiculturalismo - para "actualizar" movimentos colonizadores e estabelecer os consequentes domínios extra-nações cuja legitimidade é demasiado ambígua nos termos gerais da Democracia que entendemos e, por isso, já não convencem.
Politicamente, a prática da aculturação civilizacional já tem uma história longa: já se "evangelizou", já se "reformou", já se "(contra)reformou", já se "iluminou", já se "colonizou", já se "nacionalizou", já se "privatizou", já se "europanizou", patati, patatá.
Reinos, condados, penínsulas, federações, confederações, impérios, repúblicas, colónias, emirados, faixas, estados, democracias, ditaduras, eixos, patati, patatá, já se fez tanto que só nos resta ou a vastidão sem fronteiras do multiculturalimo ou voltarmos à meta!
Eu esperava outra coisa que não sei o que é de Ralf Dahrendorf, um reformado da política inglesa colaborante do americanismo expansionista, mas que raio, pelo menos um douto das Ciências Humanas!
Pensando bem, o que é que eu queria ler... se no seu tempo político útil, nem as questões católicas do IRA (a guerrilha de combate ao domínio inglês contra a unificação da Irlanda do Norte ao restante do país) e do Ulster o senhor não conseguiu resolver...
O que é que eu queria ler... se ainda antes da monarquia inglesa devolver os territórios irlandeses que Henrique II alienou à nobreza irlandesa (1175) através da Tratado de Windsor, o próprio IRA cessaria a oposição armada...
O que é que eu queria ler... de um ex-observador/mediador do conflito da Irlanda - também de questões culturais e religiosas - que só reconheceu o Sinn Féin e concedeu a autonomia à região do Ulster (a Irlanda do Norte) em 1949.
Pensando bem, o que é que eu queria ler... se antes do entendimento entre os irlandeses do Norte e a coroa britânia, o Estado da Palestina foi reconhecido e neste preciso momento mais de 50% dos colonatos já estão vazios...
Não há «dilemas», há é que reconhecer que o multiculturalismo tem vários rostos e nomes, e deles todos depende a sua verdade.
Vários intervenientes, por assim dizer. «O verniz do multiculturalismo é fino» pela manietação fraudulenta que lhe impõem e não por uma qualquer característica ética que permite que não seja «preciso muito para virar pessoas de um grupo contra aqueloutros com os quais até aí tinham vivido aparentemente em paz», como Ralf Dahrendorf exemplifica com os Balcãs.
A Radovan Karadzic associa-se também uma «brutal matança», mas é uma questão de soberania política bem diferente do que o terrorismo apregoa.
E não é de forma nenhuma «um fenómeno moderno» esse sentimento «da falta de pertença». É sim, a acção terrorista de expressão fanática que se herdou do desenvolvimento democrático tardio das terras do Al-Corão.
A Europa de Ralf Dahrendorf sofre hoje o etnocentrismo (2) sustentado belicamente do Islão religioso primitivo.
Os tempos mudaram, o Ocidente tem à sua porta a determinação civilizacional do mundo árabe numa ofensiva tão discriminatória e preconceituosa, quanto a cultura ocidental outrora personificou pelo mundo fora.
Neste século, os bárbaros são eles e o terrorismo nada tem a ver com o multiculturalismo, exceptuando nos discursos "obscuros" de quem não reconhece a falsa «integração multicultural».


&
(1) "Público" - 17/09/2005
(2) Posicionamento de superioridade de um grupo étnico em relação ao(s) outro(s).