segunda-feira, agosto 29, 2005

Futebol ao som de "O Comum dos Mortais"(*)


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«Mazarino exortava-o a comparecer nas tertúlias onde o que estava em causa era uma grosseira sedução da cena pública em que as ideias contavam pouco. O que contava era uma representação colectiva, ansiosa por se ajustar a um regime que os dispensasse da história real que era o medo da morte»
Há algum tempo um jornalista versado na imprensa desportiva reclamava para reflexão séria o abandalhamento em que se tornaram as grandes competições futebolísticas. Precisamente as que, depois de tudo o resto da malha competitiva regional de cada clube nos seus domínios, se esperam vir a constituir os momentos por excelência do fair-play, da mais pura ciência dos "onze e uma bola" e da qualidade técnica na incomensurável resistência do indivíduo atleta.
Nos dias de hoje, esta modalidade desportiva (mais que qualquer outra) deseja-se como o palco humano da sua própria transcendência «e uma representação colectiva ansiosa por se ajustar a um regime que dispense» os homens «da sua história real».
Um placebo sociológico, um anti-depressivo e o potencial natural que a biociência diz abençoar todos, desde os que ultrapassam a sua própria estrutura biológica aos espectadores que participam num sentimento histórico que remedeia a ciática patriótica.
Embora muitas competições de futebol lembrem mais os gladiadores romanos em ovação do que as competições olímpicas dos primeiros atletas atenienses que se conheceram, elas não deixam de se tratar de momentos colectivos de grande intensidade e que se perpetuam na memória.
Os atletas conquistam poder evolucionista sobre a sua espécie e lembram à sociedade que também são motores de êxito. Esta partilha-o num histerismo salutar e, a partir da sua incontestável capacidade profícua, improvisa para si mesma um idealismo de sucesso e fomenta a cultura de competição.
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«Marcos não dava ouvido a Mazarino e preparava-o para que ele o substituísse num destino cuja religião era a vontade política. Com isto Mazarino havia de se contentar; a bandeira da sociedade reinventada dentro da cultura nacional e universal, bastava para o tornar necessário. Ia perder-se porque teria de ignorar as leis e criar os seus próprios meios de autoridade»
Na modernidade, a génese da competição não deixa de tratar-se da tradicional questão da sobrevivência, mas constitui um paradigma perverso resultante da sofisticação dos vários factores socio-humanos: o deslumbre do que nos imortaliza, o desequilíbrio de poderes que isso constitui entre todos e a ambição sem controle que pode ser fatal.
O jornalista fazia-se ingénuo e propunha-se incrédulo: «as equipas que falham quanto menos se espera e fogem com habilidade ao apuramento de responsabilidades».
O futebol não representa apenas uma actividade desportiva que desperta o fascínio da capacidade sobrehumana. No conjunto de outras modalidades (e pondo de lado a sua componente económica) é uma acção onde também coabita o atropelo aos limites de manutenção da própria vida, coisas do domínio do insólito e do gozo secular em assistirmos ao colapso de alguém igual a nós.
É o mesmo fenómeno (embora com nuances modernas) da justiça antiga e medieval que levava centenas de pessoas a um estado alienado de satisfação perante a visão de figuras a serem esquartejadas num exercício torturante do bem místico.
Os clubes e as massas do futebol já não têm nada a ver com a realidade primitiva do associativismo cultural e desportivo, mas tanto as claques, o uso clandestino e tolerado de substâncias químicas para a resistência impossível e casos como o do "Apito Dourado", são factores relacionados com o mesmo paradigma e com a «sedução da cena pública» referida por Augustina, que passam a contar pouco em prole do resultado pragmático que realiza.
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«Mas quem defende ideias acaba por ficar prisioneiro delas. Tudo isto tinha, ainda que parecesse de uma sensatez monstruosa, uma parte de desamor para com o povo. Fazia parte da sua crueldade filosófica resignar do poder»
Quando o jornalista dizia que «o futebol português atingiu o grau zero do bom senso, da moralidade e, temo-o da inteligência», estava revoltado com o falhanço cíclico da qualidade comprovada dos atletas e remetia as suas reflexões para o contexto administrativo e desvinculado do sentimento da Obra: «já tínhamos o sistema, os árbitros que roubam, a Liga que favorece sempre o nosso adversário e os malandros da comunicação social que teimam em não ouvir só a nossa versão».
Punha de parte o romantismo imponderável e exigia a responsabilização «dos seus próprios presidentes que se aliam hoje à esquerda e amanhã à direita, sempre em nome do interesse estratégico momentâneo - e isso, sendo cínico, nem é assim tão mau» comparativamente aos insucessos no futebol.
Questionava a organização humana e dirigente que é reflexo, afinal de contas, da lascívia lucrativa (venda ou cedência de jogadores fundamentais para gerar orçamentos) e da (a)fiscalidade da capacidade e dom humano (não há bons resultados sem boas equipas e treinador) que estão em causa: «agora até temos treinadores que abraçam árbitros e equipas que não querem perder por nada deste mundo».
No fundo, no fundo, pedia contas à sua própria sociedade oportunista que só punha em causa estruturalmente quando se via negado do prazer dos dividendos das vitórias que sempre lhe descuram a ética e a transparência profissional do futebol.
O lema do jornalista, «Porquê? Para quê?» o futebol português «atingir o grau zero do bom senso, da moralidade e, temo-o, da inteligência?»
Não é o futebol português, é a sofisticação que atingiu a ciência desportiva em geral e que nos habituou a ver autênticas "máquinas" no terreno.
Mas não são máquinas, são homens... como Maradona, Fehér ou Lance Amstrong.
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(*) Livro de Augutina Bessa-luís