quarta-feira, fevereiro 02, 2005

Nem sempre a nossa linguagem de dor se adequa ao carpir dos outros

Nos momentos mais difíceis com o mundo - esse universo bicéfalo de actos e consequências que nos enreda às vezes - o sentimento de que no fim olha-se à verdade certa e não à sua condição de justiça, porque há sempre duas: a nossa e a dos outros, meus pais sempre me pediram o mesmo: «Vem para junto de nós, não fiques só nesse silêncio».
Hoje, adulta e com novos vínculos afectivos não menos comprometidos que os paternos, faço-me ainda à Estrada Nacional 10 e só paro na Rua do Bonfim, n.º 4, 2.º direito.
O quarto pequeno fez-se um grande escritório e biblioteca, a cama baixa e dura deu lugar ao sofá alto e confortável, mas o horizonte livre que se perde nas lezírias ribatejanas e no Tejo ao fundo da inclinação do bairro, continua tão imaculado quanto o silêncio protector e a companhia solidariamente ausente de há 34 anos.
À hora do almoço telefonou-me um amigo para ir ao encontro da sua condição abalada e protegida pela impessoalidade de um café.
A interioridade que o momento lhe exigia escolheu ocasionar-se ali, onde urgências só haviam as da fome ou da sede e por isso tão à vontade se sentia meu amigo em sentir-se perdido para mim.
Cheguei, sentei-me com as mãos geladas agarradas à quentura do café e limitei-me a observá-lo em silêncio, dando-lhe só a entender que o acompanhava através da expressão compassada de um sorriso ou de uma inclinação da cabeça quando me pareciam mais sofridas as suas amarguras.
Não fazia sentido pedir-lhe para «vir para junto de mim e não se quedar só no silêncio», restava-me apenas oferecer-lhe a companhia omissa e o silêncio solidário que sempre me serenou no choque e fatalidade.
Perante as lágrimas mudas e contrariadas do meu amigo, convenci-me que este interpretava na minha ternura discreta a mensagem de que o que era importante era não se consumir na escuridão que agora lhe parecia eterna, mas chorá-la sem juízos para que se lhe esgotasse a amargura e ficasse livre para voltar a sentir a verdade do que entendia.
Erro meu! Disse-me severamente que lhe incomodava o sorriso, que eu logo engoli mais o bafo do cigarro, e que também me escusava a cinismos de «coitadinho, deixa estar que logo passa» ou «tens razão, claro».
Deixei-o dizer as patacoadas todas que quisesse (é sempre o que se diz quando se está 'feito num oito') e, antes de o deixar só, terminei a conversa com uma declaração de princípios, que ele podia muito bem rasgar e deitar fora:
1) Choro contigo sempre que quiseres, mas não disfarço a ternura que me invade por afecto;
2) Não alinho na ingenuidade argumentativa de quem tem ou não a culpa;
3) Tens o meu silêncio respeitoso mas não arrisques pedir-me a opinião;
4) Acato a tua clausura temporária, se o decidires, basta-me apenas saber se estás vivo;
5) Se quiseres mandar tudo à merda conta comigo, só não contes com a resignação e a cobardia;
Mea culpa! Nos momentos mais difíceis com o mundo - esse universo dos outros connosco e de nós para os outros - nem sempre a nossa linguagem de dor se adequa ao carpir dos outros.
O alfabecto das emoções é o mesmo mas o da cumplicidade já não e chega a criar maus-entendidos: telefonou-me um amigo do café para socorrê-lo do seu infortúnio sofrido e por um silêncio sorridente mal interpretado, despedimo-nos cada um com o seu pesar: o dele, o incompreendido; o meu, o compreendi-te perfeitamente e já sabes onde me encontras se precisares....