Historieta (I)
António hesitou quando meteu a chave à porta. Nos últimos meses, sem saber explicar, sempre que regressava a casa, abria as portas do Inferno. Esperava-o o pior da indiferença e o melhor da piedade.
A casa não parecia a dele, a mulher não lhe lembrava a dele e os filhos já nem sequer os recordava, visto que se trancavam por dentro de seu quarto.
António respirou fundo e engasgou-se. Valeu-lhe no desequilíbrio a longa pega da porta que o amparou.
Abriu a custo a segunda porta e mal se viu lá dentro, assegurou-se que o silêncio era certo e dirigiu-se às apalpadelas no breu para a cozinha. Manteve-se inerte na escuridão que o abraçava e sentou-se a um canto até ganhar coragem para se erguer novamente.
Transpirava de medo sem saber porquê.
- António!- O homem susteve a respiração de susto.
- António!!!!
A mulher aguardava-o do outro lado da escuridão. Não se mexia, apenas o chamava, ao que lhe parecia de muito longe.
O homem, calado e a tremer, não dava qualquer sinal ao chamamento, mas começou a chorar baixinho para a voz feminina, que nem filho que se perde de sua mãe.
- Estás bêbado, António... Estás outra vez bêbado...
Enquanto falava, o choradinho surdo aumentava e o homem enrolava-se em si mesmo de desespero. Já não era medo o que sentia, mas vergonha, fétida e desconfortável. Vergonha do corpo descontrolado, das palavras que se tropeçavam e da reacção que já nem sequer encontrava para a enfrentar.
Meia-hora se passou sem que algum deles se revelasse. António contorcia-se e Luísa observava-o impassível.
- Lu... Luí... Luísa???
Foi quando ouviu o seu nome, quando se reconheceu naquela boca babada e trémula, que se dirigiu até ele e o ergueu no ar como uma Pietá.
A mulher levou-o para o seu quarto. Despiu-o meigamente e pousou-o na cama com jeitos maternais já muito esquecidos.
Cobriu-lhe o corpo gasto com suavidade. Apagou a luz e desapareceu no corredor.
- Lu... Luí... Luísa??? - chamou assustado, sem qualquer resposta.
Ficou no silêncio alguns minutos, até sentir alguém. Era Luísa, que se enfiava nos lençóis.
O homem sentiu o cetim fresco e as rendas atrevidas da combinação que lhe oferecera à já tempo que não sabia.
- Lu... Luí... Luísa??? Estou bêbado, mas ainda lúcido...
A mulher beijou-o e abraçou o seu corpo basso e manso com toda a força.
- Lu... Luí... Luísa??? Preciso que acredites outra vez em mim como o teu homem...
O silêncio. Na noite apertaram-se aqueles corpos vencidos para acreditar que eram reais.
Fizeram um amor diferente.
Velaram-se com a redescoberta do outro e desejaram um filho dessa ternura conquistada.
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